Manaus, 29 de março de 2024
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Artigos & Opinião

A pedagogia cruel do Coronavírus

A pedagogia cruel do Coronavírus

Segundo o sociólogo português Boaventura Santos, da Universidade de Coimbra, existe um debate nas ciências sociais sobre como a sociedade poderia conhecer melhor as instituições em situações de crise do que em tempos de normalidade. Na atual crise de saúde pública, causada pela pandemia do novo Coronavírus, podemos ampliar este debate para os indivíduos, além das instituições.

Boaventura de Sousa Santos. Foto: Leila Fugii

A título de exemplo, evidencio o  livro “A Peste” (1947), do filósofo franco-argelino Albert Camus, que voltou a ser best-seller na França e na Itália, impulsionado pelo surto da Covid-19 na Europa. Nesta obra, é narrada a história de uma epidemia em uma pequena cidade da costa argelina, no período pós-Segunda Guerra Mundial.

O livro é uma alegoria sobre uma ameaça externa e como os indivíduos reagem em situações-limite. Na narrativa, a primeira reação foi o negacionismo. A peste não estaria à altura do homem, segundo os personagens de Camus. O flagelo não seria real. Depois, com a gravidade da praga, o comportamento dos indivíduos torna-se um dilema ético. Afinal, o que seria permitido em meio a uma calamidade de saúde pública? A mensagem do livro é contemporânea.

Boaventura fala da Covid-19 como um inimigo invisível. É também uma ameaça externa, porém oculta, ao menos no seu início. O vírus seria traiçoeiro e imprevisível nas suas mutações, tornando-se devastador.  No Brasil, acreditava-se ingenuamente que o clima tropical iria nos proteger do contágio. Como resultado, temos no presente a desinformação e o medo caótico generalizado entre as pessoas, enquanto ainda se nega a morte sem fronteiras.

O sociólogo português criou a expressão “a cruel pedagogia do vírus” e publicou um ensaio no qual apresenta reflexões sobre o impacto do isolamento social nos grupos mais vulneráveis e mostra a incapacidade do sistema econômico em enfrentar este novo desafio, sugerindo que a atual pandemia estaria assim trazendo lições a serem aprendidas, mas de uma forma cruel, e ainda não sabendo se seremos capazes de aprendê-las.

 

Uma dessas lições é que o retorno à normalidade pós-pandemia não será igual para todos. Os empregos e os salários, por exemplo, estarão à espera e à disposição dos trabalhadores? E os atrasos na educação?

Em relação aos empregos, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), demonstrou o Brasil começando 2020 com 12,6 milhões de desempregados e 38,4 milhões de pessoas na informalidade. Além disso, de acordo com o IBGE, havia no fim de 2019, 13,5 milhões de pessoas no país em situação de extrema pobreza, ou seja: que sobrevivem com até 145 reais por mês. Essa situação de miséria também atinge os estados do Norte e Nordeste, principalmente a população analfabeta ou com apenas ensino fundamental incompleto. É neste cenário pré-pandemia, o qual revela a fragilidade da política econômica e da educação brasileira, que o fosso da desigualdade social irá se ampliar entre quarentenas intermitentes.

Gravura “Die Familie (Egon Schiele, 1918).
Pintor austríaco que retratou sua família durante a Gripe Espanhola.

As consequências são graves e não podem ser subestimadas pelas instituições e pelos indivíduos, como nos exemplos históricos. Para o intelectual lusitano, a quarentena causada pela atual pandemia seria uma quarentena dentro de outras quarentenas.  Teríamos ainda a quarentena econômica, a política e a ideológica, entre outras.  Talvez somente quando nos libertamos dessas quarentenas estaremos verdadeiramente livres.