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Brasil

Ex-governador de Rondônia tem fazenda sobre um sítio arqueológico indígena

A cacique Valda, do povo indígena Wajuru, explica que as urnas, onde os indígenas eram enterrados, representam um patrimônio histórico nacional, mesmas urnas que são usadas como vasos de flores pela família Cassol

Ex-governador de Rondônia tem fazenda sobre um sítio arqueológico indígena

Foto: José Cícer/ Agência Pública

No município de Alta Floresta D’Oeste, no distrito de Porto Rolim, região de planície alagável, que se torna uma ilha fluvial na maior parte do ano, a Agência Pública apurou denúncias de irregularidades fundiárias já apontadas pelo Incra no processo de privatização de uma área de 12 mil hectares da fazenda Mequéns, onde a família do ex-governador e ex-senador Ivo Cassol cria gado e tem uma imponente sede com piscina e Jacuzzi.

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Foi a partir de 2005, quando Cassol ainda era governador de Rondônia, que os filhos Ivo Junior Cassol, Karine Cassol Raposo e Juliana Mezzomo Cassol adquiriram a fazenda em um trâmite envolvendo o irmão e sobrinhos de Sebastião Ferraz de Camargo, fundador da construtora Camargo Corrêa.

Sob a fazenda Mequéns e em parte da vila de Porto Rolim, os indígenas que reivindicam o território tradicional afirmam existir um sítio arqueológico com suas urnas funerárias – “constantemente destruídas”, como denunciou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em relatório de 2017.

Urnas Funerárias

O documento aponta que algumas das urnas funerárias indígenas aparentam ser “usadas como floreiras” – que volta e meia servem de cenário para os vídeos de Juliana Cassol, influenciadora digital fitness.

A cacique Valda, do povo indígena Wajuru, explica que as urnas, onde os indígenas eram enterrados, representam um patrimônio histórico nacional. “Elas estão espalhadas pela vila, pelos sítios, em todos os cantos onde moravam índios”, diz.

Ivo Junior Cassol afirmou à reportagem que nunca viu os artefatos e que os vasos mencionados pelo Iphan no relatório foram dados a uma de suas irmãs. Segundo ele, muitas das acusações contra a família são políticas. “Vão na cabeça desse pessoal que tem menos conhecimento e dizem que os Cassol vão fazer tal e tal coisa, e nós não fazemos nada.”

Por estarem sobre outras áreas sensíveis do sítio arqueológico, o Iphan embargou uma pousada e a construção do posto da Polícia Ambiental de Porto Rolim e da sede da Idaron, a Agência de Defesa Sanitária Agropastoril, voltada para a pecuária do estado de Rondônia. Mas, apesar do embargo, as construções, feitas durante o mandato de Cassol, seguiram normalmente.

Ministério Público Federal

Em setembro de 2019, o Ministério Público Federal (MPF) em Ji-Paraná (RO) fez um acordo judicial com o município de Alta Floresta D’Oeste e com o estado de Rondônia, exigindo a execução de um programa de compensação pelos prédios públicos construídos sobre o patrimônio arqueológico.

Não são apenas as denúncias de irregularidades apuradas pela reportagem que pesam sobre a família Cassol. Ivo pai já foi considerado o maior devedor do Ibama entre os senadores, quando ocupou o cargo, entre 2011 e 2018. No período, o político integrou a bancada de congressistas que criticavam a rigidez do atual Código Florestal.

Ele tem três embargos ambientais por destruição da flora registrados no órgão, todos no próprio município de Alta Floresta D’Oeste. Já as multas ambientais em seu nome somam R$ 1,300 milhão. Seus filhos também já foram condenados em primeira instância pelo desmatamento de cerca de 300 hectares na própria fazenda Mequéns, em outubro de 2017. A família entrou com recurso contra todas as multas.

Entre os embargos que Ivo Cassol sofreu pelo Ibama está uma denúncia por construção de uma estrada irregular de terra dentro de uma Área de Preservação Permanente (APP) em 2008. A estrada é o caminho de terra de quase 200 km que liga Alta Floresta D’Oeste a Porto Rolim

Junior Cassol acredita que essa multa, que não foi paga, se tratou de um “problema político”. “Não foi meu pai que abriu a estrada, foi o governo do estado”, argumenta. Na época, o governador era Ivo Cassol, seu próprio pai.

Cassol pai é conhecido como “Maçaranduba”, um tipo de madeira, apelido pelo qual foi delatado por um executivo da Odebrecht à Lava Jato, por corrupção em um processo de licenciamento no início de sua carreira política. De todas as denúncias em relação ao político, essa é a única que de fato gerou punição: Cassol foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a quase cinco anos de reclusão, revertidos em serviços à comunidade, em 2013. Até 2018, no entanto, seu mandato ainda não havia sido cassado. Ele está inelegível desde então.

Há nove anos a irregularidade confirmada pelos documentos obtidos pela reportagem tinha sido apontada pela Procuradoria Federal Especializada do Incra, que enviou provas dela para a então Superintendência Nacional de Regularização Fundiária na Amazônia Legal (Serfal) – à época pertencente ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) –, mas a investigação não avançou.

“Recomenda-se, ainda, que a Serfal (…) observe as informações contidas nos autos administrativos, sobretudo sobre a concentração das terras públicas se darem sobre títulos nulos e inadimplentes, outorgados por esta Autarquia Agrária”, destaca um dos documentos da procuradoria especializada do Incra.

No entanto, a investigação não avança desde setembro de 2015, quando a Serfal solicitou documentos — não entregues — ao então superintendente regional do Incra de Rondônia.

O Incra

O atual superintendente regional do Incra em Rondônia, Ederson Littig Bruscke, confirmou à reportagem que o teor do processo sugere o cancelamento dos contratos pelos quais os agricultores venderam as terras públicas de Porto Rolim à família Camargo Corrêa, o que resultaria na devolução das terras de Cassol para a União. O Incra não confirmou se o processo será retomado.

De acordo com o MPF, em casos que envolvem, por exemplo, desmatamento em terras públicas ou indígenas, ocorreram operações e denúncia dos envolvidos. Um servidor do Incra, que preferiu não se identificar, afirmou que, se a lei que rege as questões agrárias fosse seguida, os atuais proprietários da Mequéns deveriam “pagar pelo tempo que utilizaram as terras”.

Também a Polícia Federal (PF) abriu um inquérito sobre o caso em 2008, depois de posseiros que viviam no território da Mequéns terem denunciado “expulsão com violência das terras, públicas, a mando do Grupo Cassol”. O inquérito foi enviado ao MPF no município de Ji-Paraná em 2011 e encaminhado ao STF devido ao foro privilegiado de Cassol – o inquérito prescreveu e foi arquivado em 2015.

O professor de direito agrário na Universidade Federal de Rondônia (Unir) Afonso das Chagas explica que a decisão da suprema corte não contempla uma das bases do direito agrário. “Tudo aquilo que envolve o bem público e a terra pública não prescreve.” O professor acrescenta que a decisão dos ministros do STF remete os autos novamente para o MPF em Ji-Paraná, para que os demais suspeitos que não tinham direito ao foro privilegiado, como os filhos de Cassol, fossem julgados, o que não ocorreu.

Ivo Junior Cassol afirmou que desconhecia a situação irregular das terras onde fica a fazenda. Ele alegou que as terras “são deles” e “estão escrituradas”. “Para mim, estava tudo certo.”

Para o professor Afonso das Chagas, o processo questionando a irregularidade da ocupação da fazenda Mequéns não chegaria ao STF sem o conhecimento de seus proprietários. “Não tenho dúvida de que foram avisados”, avalia.

Segundo ele, a situação revelada pela reportagem segue irregular desde quando os lotes foram inicialmente revendidos. “Querem abocanhar um patrimônio público contando com a inoperância e inércia do Incra.”

 

*Com informações A Publica