Manaus, 25 de abril de 2024
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Brasil

Morre aos 78 anos o escritor Sérgio Sant’Anna, vítima da covid-19

Sérgio Sant'Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura

Morre aos 78 anos o escritor Sérgio Sant’Anna, vítima da covid-19

(Foto: Raquel Cunha/Folhapress)

No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual que a literatura brasileira já teve notícia.

Sérgio Sant’Anna morreu neste domingo, 10, vítima da covid-19. Sérgio Sant’Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria com um profundo interesse nas letras, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade.

Essa visão influenciou mais de uma geração de escritores. Ele estava internado no Hospital Quinta D’Or, na zona norte do Rio, há uma semana.

Acostumado a distinções e reconhecimentos críticos, Sant’Anna continuou criando até o fim da vida, nos seus textos ficcionais, uma ambientação sensual para reflexões profundas que encontra poucos paralelos na literatura brasileira contemporânea.

A proliferação de sua escrita contrasta com a construção da frase em seus textos, pensada como elemento estético-político, sempre tratada com elegância mesmo na ativa participação do escritor nas redes sociais.

Profundamente interessada pelo mundo ao seu redor, bem como a histórias do passado, e situada numa geografia tipicamente brasileira, carioca, a obra de Sant’Anna se volta para os conflitos íntimos dos seus variados personagens, colocando-os em confronto com a sociedade, tornando-se assim universais. Incansável, o escritor sempre buscou novos caminhos, mantendo em sua obra a coerência de um universo particular.

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Sua tendência à experimentação formal é facilmente detectada no trânsito que sua obra mantinha com diversos gêneros, embora ele mesmo reconhecesse no conto o seu métier principal.

“Me dou melhor com formas mais breves”, disse o escritor num encontro com leitores em Curitiba, há 10 anos.

“Tenho muito mais tendência à narrativa curta do que ao romance. No romance, existe uma vocação. Tem gente que é romancista quase que nato. Tem gente que cria, que puxa aqueles fios da meada, por exemplo, a saga de uma família inteira, que encontra personagens secundários desenvolvidos. Comigo é o contrário, tenho uma tendência à concentração. Inclusive, tem uma coisa que eu sei explicar: o conto me permite experimentar mais. Eu gosto de ser lido – não é experimentação no sentido de tornar o livro absolutamente ilegível. É experimentação no sentido de procurar formas novas para cada livro.”

Mais recentemente, porém, ele demonstrava inquietação com a definição “conto”, preferindo em seu lugar a palavra “narrativas”.

Seus narradores, seguindo a coerência, têm plena consciência da própria condição de narrar, estabelecendo assim desde o primeiro plano narrativo uma metalinguagem que coloca em jogo sempre as representações da realidade, e não a realidade em si, atribuindo sofisticação à sua literatura.

Um dos exemplos dessa constatação é Um Crime Delicado (1997, vencedor do Jabuti de 98), romance em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como peça, trabalhado como crítica. Antonio Martins é um crítico que se envolve em um processo criminal após o seu envolvimento com Ines, uma mulher manca que causa nele uma profunda impressão.

O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos. Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant’Anna cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado, gerando um curto circuito de alta voltagem narrativa.

Rio

Torcedor dedicado do Fluminense, o escritor também foi um dos responsáveis por inserir o futebol no contexto da literatura brasileira, em diversos contos, como Páginas Sem Glória, do livro de mesmo nome em 2012.

O escritor gostava de citar, em textos ficcionais e nas entrevistas, sua “experiência mineira”, quando ele viveu 12 anos em Belo Horizonte, mas o Rio de Janeiro acabou sendo sua principal morada, real e literária. Em um dos contos do seu último livro publicado em vida, Anjo Noturno (2017), o narrador lê Proust ao som dos “tiros de grosso calibre”.

“O Rio é mesmo o meu cenário, pois nasci e vivi aqui”, disse ele ao Estado na ocasião do lançamento do livro. “Mas também morei em Belo Horizonte por 12 anos, estada que, pela convivência com muitos artistas, foi fundamental na minha formação literária. E, por incrível que possa parecer, durante um certo tempo eu ouvia, constantemente, os tiroteios, com armas de alto calibre, vindo dos morros mais próximos. E houve momentos, sim, que me vi lendo alta literatura, ou escrevendo, ao som desses tiroteios. Mas é também porque as balas não chegam a atingir o prédio onde moro. E no conto mencionado há um episódio em que um bandido adolescente faz amor com sua namorada numa situação de alto risco. É imperdoável que o País não tenha criado perspectivas para as crianças e adolescentes das comunidades mais pobres.”

Suas obras foram traduzidas para alemão, italiano, francês, espanhol e tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia “que todo mundo já ganhou”), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro.

Política

Em 2018, como um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, lamentou o fato de as pessoas estarem na rua pedindo a volta da ditadura militar.

“Fico chateado com gente pedindo a volta da ditadura. A maior parte das pessoas que estão aí pedindo não viveram aquilo. Foi barra muito pesada. O que se vive no Brasil hoje perto daquilo não é nada. Embora haja muita coisa condenável, naquela época era uma impotência total. Os jornais eram censurados. Quem advoga ditadura, se for com honestidade, está cometendo um tremendo equívoco”, disse o autor, para palmas do público, na ocasião.

Mais recentemente, Sérgio Sant’Anna publicava diariamente na sua página no Facebook opiniões incisivas sobre o estado político do Brasil, lamentava a perda de amigos e colegas, como Rubem Fonseca, mas também pedia aos amigos contatos nos jornais, que usou para publicar dois textos inéditos em abril e maio, um na Folha de S. Paulo e um na revista Época. Costumava se referir ao presidente Jair Bolsonaro como “a Besta”, e sempre ressaltava que era necessário manter o comando do País na mão dos civis.

“Meus queridos e minhas queridas, não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir se não escrevendo”, disse ele no dia 23 de abril. A peste levou Sérgio Sant’Anna, mas a peste não pode levar de quem ficou as suas palavras, eternas.

 

(*) Com informações do Estadão Conteúdo