Manaus, 28 de março de 2024
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Manaus, 28 de março de 2024

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Falhas colocam em xeque provas técnicas do ‘Caso Flávio’

Fugindo à regra padrão de uma investigação criminal, policiais que chegaram antes da primeira-dama de Manaus, Elisabeth Valeiko, à casa do filho dela, Alejandro Valeiko Molina, no bairro Tarumã, na zona oeste da cidade, no dia 29 de setembro deste ano, e foram embora sem isolar o local, periciado quase 15 horas depois, colocaram em xeque as provas do crime conhecido como ‘Caso Flávio’. A constatação é de especialistas.

Flávio Rodrigues tinha 42 anos, era engenheiro e muito querido entre amigos e colegas de trabalho (Reprodução/Facebook)

Flávio Rodrigues dos Santos, 42, engenheiro elétrico, foi encontrado morto no dia 30 de setembro de 2019, após ter ficado em uma festa na casa de Alejandro, enteado do prefeito de Manaus, Arthur Neto. O ex-soldado do Exército, Maic Parede e o policial militar  Eliseu da Paz assumiram o crime. A polícia mantém presos Alejandro, Elielton Magno, 22 e Edvandro Júnior, 31. Magno e Júnior estavam na mesma festa de Alejandro e Flávio.

O Artigo 6º do Código de Processo Penal (CPP) prevê procedimentos de proteção da área onde é registrada uma infração penal, independentemente, se a vítima é morta. Pela lei, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciar para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais, entre outros procedimentos.

Um dos advogados criminalistas mais conceituados do País – que atualmente trabalha na defesa do delegado Gustavo Sotero, acusado de matar o advogado Wilson Justo, em 2017 – Claudio Dalledone Júnior afirmou que a quebra da “cadeia de custódia da prova”, influencia significativamente no resultado de um inquérito. “Isso inquestionavelmente vai influenciar na apuração da verdade real”, apontou.

 

Advogado Claudio Dalledone explica quais as consequências sobre as falhas na preservação das provas (Raquel Miranda/GDC)

Nulidade processual

Em análise a processos em tramitação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quebra da cadeia de custódia tem causado a nulidade de processos, como apontam artigos do professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Marcos Eberhardt. “A eventual quebra da cadeia de custódia importa, portanto, na ilicitude da prova a que se refere ao conjunto de atos”.

Um dos argumentos usados pelos policiais para não proteger a casa de Alejandro de que não se tinha certeza do local ter sido cenário de um início de crime foi rebatido por Dalledone. “Uma cena em que existe mancha de sangue na casa, um agente da polícia, diante de um quadro desses, é imperativo que, de imediato, se isole o local, isso é de lei, é de manual. Há um prejuízo significativo quando se abandona uma cena dessas e o caso evolui, com de fato evoluiu”, disse o advogado, ressaltando que sua avaliação é técnica e não faz juízo de valor sobre quem é culpado ou inocente.

‘Síndico responsável’

Última representante da Polícia Militar (PM) a ficar na casa de Alejandro, até o local ficar sem proteção do Estado, a primeira tenente Ana Caroline Bentes, declarou que deixou para o síndico do Condomínio Passaredo, a responsabilidade pelo isolamento do local onde ocorreu a festa, segundo depoimento dela à polícia, o qual a reportagem teve acesso.

Ana Carolina informou que chegou a ver sangue na casa – não especificou se muito, pouco ou onde – e que os móveis estavam fora de lugar. Apesar de ver o sangue na casa, fora dela, na parte externa do condomínio e ter a informação do sequestro do engenheiro, a tenente admitiu que foi embora. Além da exposição da área externa do imóvel, o carro de Flávio ficou sem “isolamento oficial” da polícia.

Depoimento da tenente

Prejuízo da investigação

Também atuando no ‘Caso Sotero’, uma das peritas criminais mais respeitadas do País, Jussara Joeckel, comentou o ‘Caso Flávio’. Ela relembrou semelhanças entre os inquéritos dos dois casos. “No ‘Caso Sotero’, quando o perito criminal chegou ao bar (onde advogado foi atingido), o local estava sendo lavado, e não tivermos como precisar a dinâmica do crime. O outro caso (Flávio), também, não houve preservação do local e isso gera um prejuízo muito grande na investigação, mesmo tendo havido o exame indireto”, disse

Entre os prejuízos causados à investigação, o abandono do local pode gerar dúvidas sobre o que foi retirado ou acrescentado contra ou a favor dos suspeitos. “Quando ocorre essas modificações, muita coisa pode passar desapercebida, no sentido de ter sido removido ou colocado no local depois, e isso a perícia já não tem como determinar”.

Dentre os objetos coletados da casa de Alejandro Valeiko pela polícia havia um par de tênis dele, manchado de sangue, sacos de lixo com papéis sujos de sangue, que estavam fora do imóvel.

Do horário em que a casa foi deixada sem a presença de policiais, por volta das 23h, do dia 29 de setembro, até a chegada dos peritos ao local, após o corpo de Flávio ser encontrado, aproximadamente, 14h30 do dia 30 de setembro, passaram-se, pelo menos, 15 horas.

Só após esse período, a polícia foi à casa de Alejandro iniciar a perícia. “Assim como os policiais que chegaram antes de mim à casa, eu também não sabia que tinha acontecido essa tragédia com o Flávio. Estávamos muito abalados”, declarou Elisabeth Valeiko.

A reportagem tentou contato com o delegado responsável pelo inquérito do ‘Caso Flávio’, Paulo Martins, mas ele não quis falar sobre o assunto. A Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-AM) também foi contatada, mas não retornou as informações solicitadas.

Perita Jussara Joeckel diz que modificação do local compromete trabalho dos peritos (Thiago Modesto/GDC)

Despreparo policial

Instrutor das Forças Armadas por quase 20 anos, o advogado Ricardo Gomes, que atua em Manaus, citou o despreparo dos policiais no ‘Caso Flávio’. “É inacreditável como não houve preparo básico dos policiais em preservarem a casa e suas adjacências, colocando em risco todo um inquérito policial. Se havia sangue no local, a área obrigatoriamente tinha que ser resguardada”, afirmou.

Instrutor militar por quase 20 anos, o advogado Ricardo Gomes questiona preparo dos policiais (Arquivo pessoal)

O advogado da família de Flávio Rodrigues, Helder Silveira, admitiu o despreparo dos policiais que chegaram primeiro à casa de Alejandro, mas os defendeu. “Como você vai cobrar esses procedimentos de policiais que precisam dar conta de várias ocorrências e, muitas vezes, trabalham com coletes vencidos? Eles não poderiam adivinhar que poderia ter ocorrido um assassinato ali”, afirmou Silveira.

Para a perita Jussara Joeckel, o comprometimento das provas relacionadas a um crime gera prejuízo não só à polícia, mas à Justiça e a toda a sociedade. “O prejuízo atinge a todos nós, porque cada um de nós é responsável pela Justiça de nosso País. E os policiais (que chegaram primeiro a casa de Alejandro Valeiko), muito provavelmente fizeram academia de polícia. Local sob suspeita de ter ocorrido crime é sagrado, deve ser preservado, é um preceito legal de todas as polícias.”