Manaus, 8 de outubro de 2024
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ISMAEL BENIGNO – Aonde o feminismo foi amarrar seu burro?

ISMAEL BENIGNO – Aonde o feminismo foi amarrar seu burro?

Arrotando regras, criando códigos e pré-selecionando quem pode jogar o jogo do debate de direitos das mulheres, o movimento mais aguardado do século se perde na fogueira das vaidades de quem se julga o dono da bola.

Há um político de esquerda, chamado Marcelo Freixo, com quem simpatizo bastante. E uma escritora de esquerda, a Elika Takimoto, cujos textos não me dizem muito, mas não deixam de ser simpáticos. A Takimoto está sendo xingada, ameaçada e ofendida por conta de um texto sobre cotas raciais. O Freixo está sendo acusado pela ex-mulher de machista e, como é mesmo?, “esquerdo-macho”. Parece que as duas polêmicas começaram há alguns dias, quando o texto dela viralizou negativamente, e quando a ex-mulher dele publicou um texto no Instagram. Fui tentar saber o que estava ocorrendo e descobri, na minha timeline há pouco, este texto publicado na Mídia Ninja (link no fim do texto).

É de uma feminista, e busca explicar, com aquele ar inconfundível de médico que ensina “a gente não tira a pressão, a gente afere! Se tirar a pressão o paciente morre!”, por que está todo mundo errado, inclusive quem apoia o “movimento”, quem milita pelo “movimento”, quem escreve textão pelo “movimento” e quem até se candidata pelo “movimento”.

Menos o “movimento”.

Agora o feitiço vira-se contra os feiticeiros – diga-se, injustamente. Nem a escritora me parece racista, nem o político me parece machista. Mas admitam, a coisa toda tomou uma dimensão tão grotesca que ninguém sabe mais como ser feminista. Ser feminista, algo que poderia ser somente denunciar a violência e a opressão, os preconceitos e as injustiças de gênero, virou casta social com direito a dialeto próprio, código de vestuário, avaliação de cor de pele e cor de bandeira.

Indignar-se contra a violência contra a mulher agora anda ao lado de ser contra “o golpe”, como diz o texto. Denunciar o machismo nas relações de trabalho é algo que caminha ao lado da questão ambiental e da questão indígena. Apoiar a luta pelos direitos das mulheres não vale se você “não transversaliza nenhuma dessas pautas com a luta de classes ou com a luta anti-capitalista” – está lá no texto. Ou seja, você, mulher que apanha em casa ou que sofre assédio no trabalho, agora tem gente pra te defender. Ou melhor, ia ter. É que agora problema é que há um processo seletivo desses defensores que passa pelo crivo partidário, pelo crivo racial, pelo crivo de opção sexual, pelo crivo de páginas que se curte no Facebook e pelo crivo de gosto musical. Todo mundo queria falar do assunto, mas agora só ganha senha quem concorda com todo o resto da pauta, que não tem nada a ver com mulher agredida e oprimida.

É um tal de “lugar de fala”, “pauta identitária”, “cis”, “héteros”, “transfeminismo”, uma salada de academicismos e frases feitas que foi, com o tempo, afugentando quem queria apoiar a luta das mulheres, mas não tinha feito os módulos I, II e III do curso de “Feminismo Anticapitalista Sindical das Bandeiras Vermelhas Históricas Contra o Sistema”, ministrado pelos DCEs das universidades brasileiras.

O texto também ataca uma tal “pós-esquerda”, que é formada por aqueles que até discutem “o machismo, a desigualdade de gênero, a desigualdade racial e denunciar privilégios de gênero e os privilégios de cor”, mas que também estão errados.

Porque não atacam o capitalismo.

Ou seja, você pode até ter nascido com um pênis, o que já te tira alguns pontos na seleção natural desse bioma escalafobético em que se tornou a discussão de gênero atual, desde que lute contra o machismo, a desigualdade, o racismo e os privilégios de cor. Aí tudo bem. Mas não ser anticapitalista já é demais, e você não é mais bem vindo na luta delas. Trocando em miúdos, você só pode se indignar de verdade com uma agressão a uma mulher se apoiar o Maduro. Se não apoiar, você é o que o texto chama de “feministo pós-esquerdista”. E isso, o texto também ensina, é “a semente da nova direita”. Entendeu?

A miscelânea de regras, códigos e “lugares de fala” é tamanha que o novo feminismo nasceu como a promessa de avanços históricos mais do que bem vindos num mundo tão historicamente desigual, mas dá sinais claros de que se perde em si mesmo. De um lado, vira vítima de aproveitadores (e aproveitadoras) que querem apenas comer gente com o uso de discursos inclusivos e bacanas, e do outro lado vira uma Torre de Babel em que nem mesmo alguns de seus ícones podem mais viver em paz. Elika Takimoto disse que seu CPF e a foto de suas filhas foram publicados junto a agressões na internet. Marcelo Freixo, que no ano passado era a cara de uma esquerda rejuvenescida e bem-intencionada, virou um “feministo pós-esquerdista”. Ou um “esquerdo-macho”, segundo a própria ex-mulher. Desacostumada com o debate aberto e sem conseguir compreender o que ocorre com o mundo lá fora, a esquerda começa a se canibalizar entre os seus.

De toda a bagunça que se tornou a discussão em torno dos direitos das mulheres, o que se tira é a conclusão de que falta, e muito, humildade àqueles (e àquelas) que tomaram pra si, sem qualquer discussão prévia, a defesa de mulheres, índios, bichos, igarapés e insetos em nome de uma superioridade acadêmica e moral sem qualquer comprovação científica. A prova dessa miopia ideológica é achar que, no vasto mundo de injustiças vulgarmente chamado de Brasil, o inimigo maior é o coleguinha bolsomínion da faculdade de física no prédio ao lado. O papel do pensamento de esquerda, vital para a luta contra as injustiças que a natureza humana faz aflorar num ambiente selvagem como esse mundo, virou um bate-boca fútil entre pessoas que esqueceram de pensar o mundo e preferiram olhar apenas para si, numa disputa fratricida por atenção, likes, compartilhamentos e viralizações na internet. Mudar o mundo, pra quê?

Não, meninas. O inimigo não é o coleguinha bolsomínion. O inimigo é essa arrogância típica de quem cria códigos e regras de um novo jogo apenas com a intenção de virar mandachuva do primeiro torneio. O feminismo moderno, tão necessário e esperado por toda a sociedade – à exceção dos extremos que sempre devem ser desprezados – está a caminho de se estragar e cair na antipatia geral não porque o mundo quer continuar sendo machista, e sim porque o jogo foi estragado com tanta regra.

É bem mais simples do que isso. O mundo quer tratar o problema das desigualdades dialogando com quem realmente quer dialogar e melhorar a realidade. Quem disse que é preciso ser marxista ou ambientalista pra defender direito de mulher? No final das contas as donas de casa agredidas pelos maridos, os cachorros abandonados pelos donos, os índios massacrados pelos fazendeiros e as árvores arrancadas pelos posseiros não sabem o que é “pauta identitária” nem “lugar de fala”. Enquanto o “movimento” for apenas a busca pelo prazer da autoafirmação ideológica e a busca por gente “lacradora” nas redes sociais, o caminho à frente é a chatice, o sectarismo, a irrelevância social e a antipatia geral.

O mundo precisa de um movimento que finalmente discuta o “lugar de fala” da mulher comum, pobre, sem emprego formal, sem direitos garantidos e sem amparo legal, e não a parafernália de frases feitas na qual vocês transformaram um dos assuntos mais sérios das sociedades, a igualdade de direitos entre mulheres e homens.

Discutam se são machos, cis, héteros, trans, pretos, brancos, índios, colonizadores ou colonizados. Discutam se são capitalistas, socialistas, contra ou a favor do golpe. Discutam quem pode falar, quem não pode. Quem tem pinto e é “ome”, quem tem pinto mas é legal. Discutam quem respeita as “pautas identitárias” e os “lugares de fala”.

E continuem assistindo, uma a uma, as pessoas indo embora dessa conversa sem pé nem cabeça. Expulsas por vocês e pela sopa de letrinhas em que vocês transformaram o que é simplesmente apanhar do marido, tomar cantada do chefe, ganhar menos pelo mesmo trabalho, ser obrigada a fazer sozinha tarefas domésticas e ser abusada emocional e fisicamente por outras pessoas.

Acreditem, a imensa maioria das mulheres não é feminista. Não porque não queiram ser, e sim porque não têm acesso à informação que vocês têm, mas que vocês usam só para exercícios de narcisismo e exclusão ideológica. A maioria das mulheres não é feminista, não leu Judith Butler e nem Angela Davis porque estão ocupadas apanhando em casa, enquanto vocês discutem quem pode falar sobre elas.

Eu sei, sou um caso perdido, já fui expulso, bloqueado, “desamigado” e convidado a não opinar mais, mesmo quando quis declarar apoio à causa e reconhecer a necessidade e o momento de começar a mudar esse jogo. Afinal de contas, eu era a favor, mas tinha pinto, era branco, cis, hétero, capitalista. E nessa equação, apoiar a igualdade de direitos não valia tanto ponto quanto o resto. Paciência.

Então me resta fazer o que todo ser humano tem o direito de fazer, que é opinar livremente e falar, inclusive bobagens, sobre o que eu quiser, desde que eu não esteja agredindo, ferindo ou desrespeitando ninguém.

Esse é o caminho natural da sociedade, queiram vocês ou não: um ambiente livre, feito de problemas reais e de pessoas reais que não sabem discutir lugar de fala, que não sabem lacrar, que não sabem o que é feministo pós-esquerda.

O mundo já vinha lentamente se afastando desse samba do crioulo doido em que se tornou o debate feminista. O que era uma pena, de verdade. A esquerda se enrolou nas próprias regras que inventou – dentro das faculdades – para explicar por que o mundo é assim. Só podia dar nisso, o que realmente é uma pena.

Mas podia piorar. Agora o monstro que vocês criaram está começando a engolir até seus ícones e seus militantes mais legítimos. Na falta de contato com o mundo externo, a esquerda está trocando tapas, cusparadas e acusações estapafúrdias.

E isso, me perdoem a franqueza, é mais do que bem feito.

Aqui, o link para o texto “O machoesquerdista e o feministo pós-esquerda” (http://midianinja.org/lianacirne/o-machoesquerdista-e-o-feministo-pos-esquerda/), de Liana Cirne Lins, no site Mídia Ninja.

Aqui, o link para o texto “Contando sobre as cotas…” (https://elikatakimoto.com/2016/04/30/contando-sobre-as-cotas/), de Elika Takimoto em seu próprio site.

Aqui, matéria do site Catraca Livre sobre a acusação sofrida por Marcelo Freixo: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/marcelo-freixo-e-acusado-de-machismo-pela-ex-esposa/

Ismael Benigno Neto é administrador de empresas e assinou o blog O Malfazejo entre 2004 e 2015, criou o extinto site O Avesso, escreveu nos jornais O Estado do Amazonas e Diário do Amazonas. Hoje é funcionário público.