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Após denúncia de brasileiro, Holanda suspende adoções internacionais

Patrick Noordoven, 41, saiu recém-nascido de seu país natal, adotado por um casal holandês, e um dia resolveu conhecer sua família biológica

Após denúncia de brasileiro, Holanda suspende adoções internacionais

Foto: Reprodução

Foram tantas mentiras, golpes de sorte, reveses e perseverança que a história de Patrick Noordoven, 41, vai virar um livro na Holanda. Neste mês, dois novos fatos acrescentaram reviravoltas à vida desse brasileiro que saiu recém-nascido de seu país natal, adotado por um casal holandês, e um dia resolveu conhecer sua família biológica.

A primeira novidade chegou no dia 8 deste mês. Um comitê criado na Holanda após repetidas denúncias de Patrick apontou responsabilidade do Estado em “vários tipos de abuso que ocorreram estruturalmente”, e o governo interrompeu os processos de adoção internacional no país.

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A história começa em fevereiro de 1980, quando um bebê de dias foi levado da maternidade para o Lar Jumbinho, em São Paulo. De lá, foi entregue ao casal holandês Noordoven, cuja mulher (então com 27 anos) perdera a possibilidade de engravidar após um tratamento contra o câncer.

Em março de 1980, Patrick chegou à cidade de Gouda (62 km ao sul de Amsterdã), onde cresceu sabendo que tinha sido adotado. Mas só quando começou a se interessar por suas origens, 20 anos depois, os Noordoven lhe contaram um segredo: haviam forjado seu registro de nascimento, e não existia um documento no qual ele pudesse encontrar os nomes de seus pais biológicos.

Os pais “jurídicos”, como Patrick os chama, pediram que ele esquecesse a ideia de “revirar o passado”. Mas o garoto não esqueceu. Economizou ao máximo sua bolsa de estudos, espremeu os Noordoven até conseguir deles o nome de um contato em São Paulo e embarcou para o Brasil sem data para voltar.

As portas bateram na sua cara logo nos primeiros dias: os supostos intermediários da adoção negaram tudo. O garoto então pediu hospedagem à diretora do Lar Jumbinho, na esperança de que Dalva se lembrasse de alguma pista.

Passado um mês, estava quase desistindo quando conheceu Daniel, motorista e irmão de Dalva. “Eu levei uma moça holandesa até a Beneficência Portuguesa, e voltamos com um bebê”, contou ele.

Era pouco, mas era a única ponta do novelo, e Patrick começou a puxá-la. Na maternidade, levantou as dezenas de casos de mulheres que haviam dado à luz a um menino em fevereiro de 1980 e, ainda numa época pré-internet, usou a lista telefônica e a sola do sapato para ir atrás de cada uma, num trabalho que durou dez anos e, na média, uma viagem por ano ao Brasil. Por exclusão, chegou a um nome: Maria do Nascimento.

Faltava ainda encontrar a Maria certa, e para isso Patrick contou com a sorte e a ajuda de uma pesquisadora, que encontrou um pedido de RG feito em 1979. Quando viu a foto, ele teve certeza de que encontraria a mãe. A confirmação da identidade veio com o exame de DNA de sua irmã, Ana Paula, mas Patrick nunca viu Maria, que morrera quando ele tinha cinco anos, em 1985. “Foram dois anos de luto”, contou. Então, ele fechou o capítulo da descoberta de sua mãe e abriu outros dois.

No primeiro, Patrick partiu à procura da identidade de seu pai, uma informação que ninguém na família materna soube lhe dar. No segundo, buscou entender como uma criança podia ser retirada de seu país e ter seu passado completamente apagado e que responsabilidade tinha o governo holandês nessa questão.

Nas pesquisas, surgiram menções a uma reportagem do jornal holandês De Telegraaf sobre adoção ilegal de crianças brasileiras. Varou a noite olhando no arquivo digital capa por capa da publicação, desde 1979, até encontrar a que procurava, de 1983.

Com o nome do policial responsável, encontrou o relatório da investigação, iniciada em 1981 para apurar cumplicidade criminosa em larga escala nas adoções irregulares.

Nesse documento Patrick descobriu que os Noordoven foram interrogados em 1982 –64 pais com filhos nascidos no Brasil, uma fração do total, foram ouvidos no inquérito, e 42 admitiram ter falsificado certidões de nascimento para trazê-los à Holanda, o que era crime nos dois países.

Aos investigadores, os “pais jurídicos” disseram ter recorrido à fraude por temer uma recusa por causa de sua idade.
Ninguém foi processado após o inquérito. O Ministério Público entendeu que todos agiram de boa-fé, sem intenção de causar danos, algo de que Patrick –e outros envolvidos em direitos da criança– discorda: “Tirar uma criança da sociedade em que ela nasceu e apagar as suas origens é um atentado a seu direito de identidade. Provoca uma sensação de vazio, de perda, enorme, que muitos adotados só descobrem quando adultos”.

Dos anos 1960, quando começaram a crescer, até os anos 1990, adoções internacionais eram vistas como benefício para crianças, principalmente quando elas deixavam países pobres em direção aos ricos.

Essa mentalidade mudou na virada do século, quando surgiu legislação internacional para nortear o assunto. A partir daí, expandiu-se o consenso de que a criança só deve ser separada da família e de seu país em último caso e tem direito à sua identidade (da qual sua origem faz parte).

Patrick, que tropeçava em obstáculos para descobrir sua origem, acabou processando o Estado holandês por omissão de informações. Em 2018, criou-se um comitê para apurar irregularidades, cujas conclusões ficaram públicas há duas semanas: “O governo holandês deixou de agir durante anos, desviando-se dos abusos na adoção internacional e não intervindo, o que permitiu que eles se perpetuassem”.

O ministro da Proteção Legal, Alexander Dekker, pediu perdão em nome do Estado: “Os adotados merecem reconhecimento pelos erros do passado. Eles devem poder contar com nossa ajuda no presente. E, para o futuro, devemos nos perguntar criticamente se e como vamos seguir com a adoção do exterior”.

Para Patrick, fundador de uma ONG para defesa dos direitos dos adotados internacionais, a decisão está aquém do necessário: “Desculpas são bem-vindas, significa muito para todos nós, mas a Holanda deveria ter acabado definitivamente com a adoção internacional, uma prática que fere os direitos fundamentais”.

Embora em queda, a prática não desapareceu na Europa. De 2004 a 2014, vieram de fora da UE 11.610 adotados no bloco, e a Holanda foi o quarto país de destino, com 687.

No mesmo período, os brasileiros foram o oitavo grupo mais numeroso entre adoções (3.239), e com mais frequência foram levados para a Itália, a França e a própria Holanda.

Proibir essa “expatriação” é uma bandeira da entidade de Patrick. No Brasil, ele quer que a Justiça barre norma que deixa maternidades destruírem registros de nascimento após 18 anos. “Esses papéis são uma das únicas fontes em que adotados ilegalmente podem encontrar seus pais”.

A tecnologia abriu outros caminhos, e foi por um deles que Patrick começou a se acercar de sua linhagem paterna: os bancos de DNA. Por meio do MyHeritage, foi contatado por uma prima de segundo grau pelo lado paterno. Em comum, portanto, tinham bisavós, nova vereda para uma caçada, que já dura dez anos.

Patrick achou registros de nascimento e casamento de seus bisavós e dados sobre os dez filhos que sobreviveram –um desses, seu suposto avô ou avó. Começou a procurar os prováveis parentes um a um e pedir testes genéticos.
“Das 10 famílias, 9 concordaram, mas os resultados não indicavam ancestrais diretos”, conta. O décimo, seu provável avô, por exclusão, já havia morrido, e o único filho dele recusou o teste de DNA.

Patrick diz esperar que o filho único reveja sua posição. Mas os indícios mais fortes são de que seu pai biológico seja um outro filho de seu avô, nascido fora do casamento.

Se essa hipótese se confirmar, o brasileiro deve embarcar numa nova missão, mas esse tema terá que ficar para um segundo livro. O primeiro, segundo os planos da editora, será lançado ainda neste ano.

(*) Com informações da Folhapress