
(Foto: Divulgação/Aleam/Câmara dos Deputados e Secom)
Manaus (AM) – A discussão sobre o garimpo no Brasil, especialmente na Amazônia, vai muito além da extração de minérios. É um tema que atravessa interesses econômicos, sociais, ambientais e políticos. No Amazonas, uma parte significativa da classe política tem adotado um discurso abertamente favorável ao garimpo, muitas vezes defendendo a atividade como artesanal ou domiciliar. Esse posicionamento costuma vir acompanhado de críticas às ações da Polícia Federal, que nos últimos anos intensificou operações para destruir dragas e embarcações usadas na extração ilegal de ouro nos rios da região.
Deputados estaduais como Cabo Maciel e Adjuto Afonso, o deputado federal Silas Câmara, e até o governador Wilson Lima já fizeram declarações públicas em defesa da legalização do garimpo ou da criação de marcos regulatórios que atendam às chamadas famílias garimpeiras.
Um dos nomes mais atuantes nessa pauta é o deputado federal Silas Câmara, citado pela Revista Fórum como integrante da chamada “Bancada do Garimpo” — grupo não oficial, mas articulado no Congresso Nacional. Silas já classificou ações da PF como terrorismo, defendeu garimpeiros como extrativistas e sustenta que a atividade garante a sobrevivência econômica de milhares de pessoas nas calhas dos rios.
“O incrível é que mais uma vez as operações da Polícia Federal parecem ser cartas premeditadas para atacar a população de extrativistas minerais daquela região. É impressionante que o Estado Brasileiro só vai à Calha do Rio Madeira para fazer o tipo de operação que afronta a propriedade de extrativista mineral, artesanal, portanto não é garimpeiro de escala. Trazendo um prejuízo imenso a mais de 6 mil pessoas, 40% da economia.”
Silas sustenta que cerca de 8 mil famílias da região atuam no que ele classifica como extrativismo mineral domiciliar e artesanal. Ele afirma que pelo menos 30% da economia dos municípios da calha do Madeira dependem do garimpo.
Avanço do discurso pró-garimpo
O deputado estadual Adjuto Afonso também defende um modelo de garimpo familiar e sustentável. Ele é autor de um projeto de lei que propõe diretrizes para a criação de um Marco Regulador Estadual do extrativismo mineral, com base no Decreto Federal 9.406/2018.
“Toda a concepção estigmatizada prejudica os trabalhadores do extrativismo mineral familiar, atividade que é fonte de renda de muitas famílias no Sul do Amazonas nos períodos de seca dos rios… É uma atividade fundamental para fomentar o desenvolvimento sustentável, a geração de emprego e renda, a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida dessas famílias interioranas”, frisou.
As diretrizes do PL preveem responsabilidade ambiental, prevenção e mitigação de impactos, e concessão de direitos condicionada à formação de cooperativas ou sociedades empresariais. O projeto, porém, ainda não avançou.
Outro defensor da legalização é o deputado estadual Cabo Maciel (PL). Em pronunciamentos, ele reconheceu a importância da atuação de órgãos federais no combate ao garimpo ilegal, mas pediu a regularização da atividade e defendeu os garimpeiros.
“Se não tem a legalização, essa parte da população vai cair na ilegalidade. São homens e mulheres desesperados pela falta de oportunidade… É preciso legalizar através de associações, cooperativas, cadastro e controle da extração desse minério”, disse.
Até mesmo o governador Wilson Lima fez declarações pró-garimpo. Em 2023, ele criticou a destruição de 302 balsas utilizadas em garimpo ilegal pela PF.
“É muito interessante do ponto de vista de construção de imagem internacional as balsas sendo explodidas no meio do rio, mas e depois, do que vai viver o cidadão que depende dessa atividade? Nem todos ali são bandidos”, disse durante entrevista a jornalistas.
Em 2024, Wilson Lima entregou a primeira licença ambiental para o Projeto Potássio Autazes e defendeu a mineração como instrumento de desenvolvimento:
“Nosso principal objetivo é promover o desenvolvimento social, gerando empregos, garantindo a preservação do meio ambiente e dialogando com os povos originários”, pontuou.
O discurso pró-garimpo alcança até a esquerda. O deputado estadual Sinésio Campos (PT), presidente da Comissão de Geodiversidade da ALE-AM, defende a regulamentação da mineração artesanal.
“Muitas vezes, essa mesma balsa é a residência da sua família. Esses extrativistas mineram até 4 gramas de ouro por semana, o suficiente apenas para sobreviver”, disse.
Mas existe garimpo sustentável?
Para a Dra. Muriel Saragoussi, socioambientalista, a resposta é não. Ela afirma que o garimpo, assim como a mineração legalizada, é extremamente impactante para o meio ambiente e para a sociedade.
“O garimpo, que é feito nos rios, modifica completamente a organização não só do rio em si — uma organização com sedimentos, com plantas, com peixes — mas também contamina com produtos químicos a água. Quando é garimpo de ouro, além de todos esses impactos, também tem o impacto do mercúrio, que é um produto mutagênico. Ele transforma a genética dos animais, contamina as pessoas, provoca mutações genéticas e má-formação dos fetos. É extremamente danoso”, explica a especialista.
Segundo Muriel, legalizar os garimpos só faria sentido se fosse para proibir o uso de mercúrio e exigir tecnologias menos agressivas. No entanto, ela questiona o propósito dessa atividade.
“A gente precisa discutir é: pra que se faz garimpo? Pra que se faz mineração? Qual é o tipo de mineral que a gente realmente precisa?”, questiona Muriel.
Ela ressalta que a atividade econômica do garimpo beneficia apenas empresários. Os garimpeiros, ao contrário do senso comum, vivem em condições precárias.
“Os garimpeiros não vivem bem. Eles vivem mal no garimpo e não ficam ricos. Somente os empresários do garimpo é que ganham dinheiro nas costas do trabalho, da contaminação e da vida desses próprios garimpeiros.”
Para a especialista, legalizar o garimpo não garante sustentabilidade nem melhoria de vida. Ela frisa que mesmo os garimpos considerados de “sustento” são problemáticos, não só do ponto de vista ambiental, mas também social.
“Tanto a mineração quanto o garimpo na floresta amazônica não têm futuro. São atividades que acabam com a região, tiram tudo que tem lá, vão embora e não deixam nada — nem para as prefeituras, nem para as famílias, nem para os próprios garimpeiros. Não é porque o garimpo é ilegal que ele é ruim. Um garimpo legal ou uma mineração legal também não dá condições de vida boa para seus trabalhadores.”
Descaso político com o desenvolvimento sustentável
Sobre a atuação de políticos em defesa do garimpo e da mineração na Amazônia, o sociólogo Luiz Antônio é direto: falta compromisso com o futuro e com o desenvolvimento sustentável.
“É incrível como o Amazonas, em especial essa representação parlamentar, não tem nenhum compromisso com o futuro, nenhum compromisso com a produção de riqueza civilizatória”, afirma.
Ele aponta que o estado desperdiça oportunidades reais de geração de riqueza a partir de suas próprias cadeias produtivas. Um exemplo é o setor pesqueiro.
“No período da safra, mais de 380 toneladas de peixe desembarcam em Manaus. Dessas, cerca de 80 toneladas são jogadas fora todo dia porque não temos uma indústria pesqueira que processe esse pescado.”
O mesmo ocorre com a madeira. Apenas uma pequena parte das árvores derrubadas é aproveitada — o restante vira resíduo por falta de tecnologia e investimento.
“De cada árvore que a gente derruba na Amazônia, apenas 30% dela é aproveitada. O resto é lixo. E aí a gente compra móveis do Sudeste, feitos de pinos prensados com cola, enquanto nossa madeira vai embora in natura ou, no máximo, como lâmina.”
Luiz também critica o abandono das cadeias produtivas locais, como a da banana, e compara com o que é feito em outras regiões do Brasil.
“Lá no Vale do Ribeira, em São Paulo — que é a região mais pobre do estado — eles fazem cachaça, farinha, complemento nutricional de banana. Aqui, jogamos nossa banana fora. Basta ver aquela cena lamentável na feira da banana: frutas vendidas no chão, podres.”
Para ele, os governantes deveriam investir na industrialização dessas cadeias produtivas, gerando empregos, arrecadação e dignidade. Em vez disso, apostam em atividades degradantes como o garimpo e a mineração, com a justificativa de que trarão desenvolvimento.
“O minério não vai trazer desenvolvimento. Olha Presidente Figueiredo, que tem mineração legalizada, regulamentada, praticada pela empresa Pitinga, e tem estradas asfaltadas há mais de 30 anos. O argumento desses deputados é que isso é desenvolvimento. Mas pegue o IDH de Presidente Figueiredo e compare com o de Silves, por exemplo, ou com Iranduba, que não têm mineração. Se quiser ir mais longe, vamos olhar para os estados de Rondônia e Mato Grosso, que realizam mineração de forma ilegal, irregular, etc. Qual é a melhoria?”, questiona.
A análise segue com um exemplo ainda mais emblemático: Minas Gerais.
“Os municípios mais miseráveis de Minas são justamente aqueles com intensa atividade mineradora: Mariana, Ouro Preto, Sabará. Mineração não traz desenvolvimento.”
Segundo ele, o verdadeiro desenvolvimento está na educação, na inovação e na agregação de valor às riquezas locais.
“Desenvolvimento se faz com processos produtivos civilizados, educados, que geram emprego, renda e valor para os produtos do Amazonas. O minério vai continuar enriquecendo meia dúzia — a maioria de fora — e deixando buracos. Como foi em Serra Pelada, no Pará”, pontua.
Legalização como barganha política
Para a cientista política Juliana Fratini, a proposta de legalização do garimpo pode ser comparada à regulamentação do lobby no Brasil: um movimento onde os interesses se tornam aparentes, mas seguem restritos a quem já detém poder.
“A legalização do garimpo é mais ou menos equivalente à legalização do lobby, quando as disputas por interesses parecem claras, mas continuam restritas àqueles que verdadeiramente possuem poder e se colocam como donos dos territórios.”
Fratini afirma que esse tipo de legalização pode funcionar como instrumento de barganha política junto a comunidades vulneráveis, gerando falsas expectativas de ganhos rápidos — uma dinâmica que ela compara ao modelo dos jogos de apostas online.
“Esse tipo de legalização, como qualquer outra, pode servir como instrumento de barganha política junto a comunidades que acreditam que podem se beneficiar imediatamente. É como os jogos de apostas online, em que as pessoas são levadas a acreditar em ganhos imediatos, mas de forma predatória — mesmo quando há aparência de controle”, observa.
A cientista política também critica a histórica negligência da região Norte por parte da Federação. Segundo ela, o pouco peso eleitoral e a ausência de políticas estruturantes explicam a falta de atenção contínua, apesar da importância estratégica da Amazônia no cenário internacional.
“A região Norte não recebe a atenção devida da Federação — não apenas do Governo Federal, mas de toda a comunidade política e social brasileira. E por que isso acontece? Porque o colégio eleitoral é pequeno e a região ainda não está no centro do projeto de desenvolvimento nacional. Paradoxalmente, é a área mais importante do país no cenário internacional, por seu ecossistema e biodiversidade ainda não plenamente compreendidos”, afirma.
Fratini reconhece avanços no discurso ambiental promovido pelo atual Governo Federal, mas aponta que ainda falta ao Brasil uma cultura nacional voltada à preservação da Amazônia.
“As tensões locais, nacionais e internacionais sempre vão existir. Mas, neste caso, o problema é mais profundo: a região Norte ainda não conta com o amparo necessário quando se trata de proteção ambiental e desenvolvimento sustentável. Apesar de o atual governo apresentar uma narrativa mais sólida em defesa da Amazônia, ainda predomina no país uma cultura em que cada região prioriza seu próprio crescimento, relegando a floresta à condição de ativo distante”, conclui.
Denúncias crescem no Amazonas
Entre agosto de 2023 e fevereiro de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu ao menos 199 denúncias relacionadas ao garimpo ilegal no Amazonas. Os dados são dos Ofícios da Amazônia Ocidental (OFAMOCs), unidades criadas em 2023 para atuar de forma especializada na região.
Segundo o procurador André Luiz Porreca, ainda não há um levantamento preciso sobre o número total de garimpos ilegais no estado. No entanto, os municípios de Japurá, Humaitá e Borba estão entre os mais impactados pela atividade. Também há registros de flagrantes e de contaminação por mercúrio em rios de diversas regiões do Amazonas.
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