Manaus, 29 de março de 2024
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Eleições 2020

A sina dos vices na Prefeitura de Manaus: 32 anos de uma relação de amor e ódio

O Portal AM1 resgata, aproximadamente, 32 anos de história da relação entre o prefeito de Manaus com seu vice, que nas campanhas são jurados de amor, mas após eleitos, travam brigas e separações

A sina dos vices na Prefeitura de Manaus: 32 anos de uma relação de amor e ódio

Foto: Reprodução

Nos últimos 32 anos, a Prefeitura de Manaus foi palco de amor e ódio entre o prefeito e seu vice, que durante o período de campanha eleitoral, encenaram um “namoro eterno”, que acabou não sendo sustentado até o encerramento do mandato. O mais recente rompimento entre tais figuras foi entre Arthur Neto (PSDB) e Marcos Rotta (DEM).

Em 2016, Arthur e Rotta formaram a chapa vencedora na eleição daquele ano e a parceria entre os dois parecia ser duradoura, tanto que, no ano seguinte, o vice mudou do MDB para o partido do prefeito. Na época, Rotta, que era secretário municipal de Infraestrutura, diz ter recebido convite para ser candidato a governador do Amazonas.

No entanto, o PSDB acabou apoiando a candidatura do senador Omar Aziz (PSD) e o então deputado federal Arthur Bisneto nas eleições de 2018, frustrando o vice-prefeito que se sentiu traído com a escolha. Ele alega que sequer foi consultado das negociações políticas e só soube da ‘novidade’ por meio das redes sociais de Arthur Neto.

Logo após o episódio, Rotta se desligou do PSDB e pediu licença do cargo de vice-prefeito para assumir a Secretaria da Região Metropolitana de Manaus (SRMM) na gestão “tampão” de Amazonino Mendes. Já em 2019, ele se filiou ao Democratas (DEM) e, agora, será novamente vice na coligação do pré-candidato David Almeida (Avante) nas eleições deste ano.

“É uma chapa vitoriosa, são duas pessoas que têm pontos em comum. Eu me vejo alinhado com o David e o David está alinhado comigo”, afirmou Marcos Rotta ao Portal AM1, a poucas horas da confirmação da dobradinha com o ex-governador interino.

Leia mais: ‘São duas pessoas com pontos em comum’, diz Rotta ao confirmar ser vice de David Almeida

Arthur x Hissa x Valois 

No entanto, essa não foi a primeira vez que o prefeito Arthur Neto teve desavenças políticas com seu vice. Na lista do tucano, estão o ex-deputado federal Hissa Abrahão (PDT) – vice entre os anos de 2012 a 2016 – e o advogado Félix Valois – vice entre 1988 e 1992, período da primeira gestão de Arthur.

Em 2013, apenas um ano como vice na gestão do tucano, Hissa Abrahão rompeu a parceria com o prefeito, após insistir em se candidatar ao Governo do Estado Amazonas. Na ocasião, ele reclamou que teria sido demitido publicamente e sem nenhuma comunicação prévia, do cargo de secretário de Infraestrutura do município.

Sem apoio do próprio partido, que na época era o PPS, que optou por apoiar a candidatura de Eduardo Braga, Hissa acabou não concorrendo ao cargo de governador nas eleições de 2014 e decidiu concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. Eleito e praticamente expulso da gestão de Arthur, ele renunciou a vice-prefeitura para tomar posse como deputado federal em janeiro de 2015.

No caso das discordâncias entre o ex-vice-prefeito Felix Valois e Arthur, até hoje, não são claras. Sabe-se apenas que a parceria da dupla teve altos e baixos durante o mandato, porém, ao que tudo indica, o desentendimento ficou no passado. Isso porque Valois assumiu o Conselho de Gestão Estratégica na gestão de Arthur, de 2013 a 2016, e no passado figurou como um dos advogados de defesa do enteado do prefeito, Alejandro Valeiko – envolvido no “Caso Flávio”.

Amazonino Mendes x Carlos Souza

A sina dos vices seguiu na gestão de Amazonino Mendes, à época, como prefeito de Manaus, de 2009 a 2012. No primeiro ano de mandato, seu vice Carlos Souza, foi preso no “Caso Wallace” por associação ao tráfico de drogas e suspeito de ter encomendado a morte de traficantes de drogas.

Na época, o então prefeito Amazonino, que estava em Brasília, teria ignorado a prisão do irmão do ex-deputado estadual Wallace Souza e viajado rumo a uma conferência internacional. Carlos Souza, que estava à frente do Executivo Municipal, foi substituído às pressas pelo presidente da Câmara Municipal, Luis Alberto Carijó.

Carlos Souza ainda permaneceu no cargo até janeiro de 2011, quando renunciou a cadeira de vice para assumir mandato de deputado federal. Já em 2014, ele também renunciou ao cargo na Câmara dos Deputados, após não conseguir se reeleger.

Serafim Corrêa x Mário Frota 

No período de 2005 a 2008, o deputado estadual Serafim Corrêa (PSB) dividiu a administração de Manaus com seu vice, o ex-deputado federal Mário Frota, do PSDB. Segundo informações da época, as desavenças políticas entre ambos começou logo no primeiro ano de mandato.

Um dos pontos críticos teria sido o fato de o vice acreditar que alguns secretários nomeados pelo prefeito não estavam se empenhando e dificultavam o trabalho.

Frota teria chegado ao ponto de evitar usar a porta principal da Prefeitura de Manaus para chegar ao seu gabinete, já que em suas palavras: “o clima está tenso e eu prefiro evitar mais confusão”, declarou na ocasião.

Mesmo com a relação próxima estremecida, Mário Frota conseguiu encerrar o mandato de vice e, em 2008, foi eleito a vereador na Câmara Municipal de Manaus. Lá, ele permaneceu até 2016.

Entrevista com Ivânia Vieira, doutora em Processos Socioculturais na Amazônia 

Ivânia Vieira é jornalista, professora e doutora em em Processos Socioculturais na Amazônia (Ufam). Foto: Reprodução

 

Para a jornalista e professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ivânia Vieira, “o vice é assunto sério” e sua função, “muitas vezes ignorada pela sociedade é parte fundamental para a construção da democracia.”

“Seja para fechar diferentes acordos entre partidos e caciques políticos, agasalhar alianças e possibilidades de ampliar a simpatia do eleitor, a recorrência de ruptura da unidade da chapa eleita (prefeito e vice) demonstra a precariedade das condições em que as composições político-eleitorais estão feitas. O descompromisso com o voto dado à chapa, o desrespeito ao eleitorado e a gradativa perda do espaço de diálogo entre a primeira e a segunda autoridade, quando há divergências”, comenta Ivânia Vieira, que é doutora em Processos Socioculturais na Amazônia, também pela UFAM.

Portal AM1 – Diante disso, para melhor explicar, qual a importância e o papel de um vice?

Ivânia – Temos que valorizar a disciplina Educação e Política. Defender a inclusão dela em todos os espaços de vivência e de formação. O papel do vice, ignorado pela maioria de nós, eleitoras e eleitores, é parte desse aprendizado necessário à construção permanente da democracia. Devemos passear na história do Brasil e prestar atenção nos percursos feitos tendo a política como um dos corredores de viagem. Quanto mais compreendermos a importância do exercício político, político-eleitoral, do eleitor, dos candidatos e do voto mais apurada, tende a ser a nossa participação nesses jogos do espaço de poder.

A história da figura do vice é um desses aspectos. Nossa cultura eleitoral banaliza o/a vice candidato/a (à Presidência da República, ao Governo Estadual, à Prefeitura Municipal), embora a história brasileira – do mundo – contenha muitos capítulos sobre essa segunda autoridade.

Alguns recortes mais recentes sobre as controvérsias do vice:  há um relato, de 1947, sobre as tensões geradas no Estado do Ceará, quando o governador eleito questionou a constitucionalidade de três dispositivos. Um deles atribuía à Assembleia a eleição do primeiro vice-governador do Estado; nas eleições de 1955, João Goulart disputou e venceu como candidato a vice-presidente da República. As eleições eram separadas e Juscelino Kubitschek foi eleito presidente; em 1985, o Colégio Eleitoral elege a chapa Tancredo Neves/José Sarney. Quem assume a Presidência do País é Sarney, com a morte em 21 de abril do presidente eleito e em torno do qual um grande pacto havia sido costurado; em 1989, o Brasil vai às urnas em eleição direta após 25 anos de cerceamento desse direito. A chama Fernando Collor/Itamar Franco vence as eleições.

Em 1992, Collor é afastado do cargo, tem seus direitos políticos cassados por oito anos, e o vice Itamar Franco torna-se presidente do Brasil. Lá e cá, vice é assunto sério. Seja para fechar diferentes acordos entre partidos e caciques políticos ou agasalhar alianças e possibilidades de ampliar a simpatia do eleitor, o assunto é sério.

A recorrência de ruptura da unidade da chapa eleita demonstra a precariedade das condições em que as composições político-eleitorais estão sendo feitas, o descompromisso com o voto dado à chapa, o desrespeito ao eleitorado e a gradativa perda do espaço de diálogo entre a primeira e a segunda autoridade quando das divergências. Se a saga do vice candidato é antiga, os desfechos dos últimos anos nesse relacionamento têm sido prejudiciais à instituição pública e à população. Há algo nesse enredo agindo para naturalizar uma anomalia do sistema. Que o sistema em colapso seja mudado.

Portal AM1 – Na sua avaliação, por qual razão que, após as eleições municipais, houve uma espécie de ‘racha’ nas últimas administrações do Executivo Municipal, conforme exemplificado no início?

Ivânia – Na maioria das rupturas das relações entre a primeira e a segunda autoridade na Presidência da República, nos governos estaduais e nas prefeituras, quando buscamos saber o que houve, emergem interesses contrariados. As tensões tornam-se tão fortes, que o caminho tem sido romper em vários estilos, dos mais escandalosos aos mais sorrateiros. O jornalismo, exercido na dimensão do interesse público, está diante de uma pauta importante, em função da realidade governamental brasileira, amazonense, manauara, e das eleições municipais de novembro.

As chapas estão prontas, os compromissos delas estão sendo espalhados. O voto não é o último ato do eleitor ou da eleitora. O pós-eleição exige vigilância e cobrança. Vice tem lugar na gestão executiva, tarefa importante para realizar e papel estratégico para somar ou dividir. Quando falamos do vice e das arengas envolvendo-os, estamos falando de questão pública, da esfera pública de tomada de decisão. Não é questão privada, diz respeito a cada um e a cada uma de nós, eleitores, contribuintes, moradores da cidade. Prestemos atenção nos movimentos feitos pelo vice-presidente da República do Brasil, pelo vice-governador do Estado do Amazonas, o vice-prefeito de Manaus e o recente corre-corre para compor as chapas que irão disputar as prefeituras municipais.

Portal AM1 – Umas das brigas mais antigas foi entre Valois, na primeira gestão de Arthur na Prefeitura de Manaus, entre 1988 e 1992. O que a senhora lembra desse episódio?

Ivânia – É complexo mensurar a intensidade dos desentendimentos. No caso “Arthur Neto X Felix Valois”, quando comparado com outros que vieram depois, é possível perceber temperaturas e insultos mais elevados.

Inserir a categoria tempo e espaço dos acontecimentos nos ajuda a uma leitura mais ampliada, melhor contextualizada. Diria, nessa linha de recordação, que as desavenças entre o então prefeito de Manaus e o vice não avançaram muito além do casulo e do barulho produzido por duas figuras habituadas a batalhas ferrenhas em um Brasil efervescente nas lutas por liberdade e pela redemocratização – que não se implanta num clique – após o longo processo de ditadura militar.

Homens de opiniões fortes, cultos e cada um com suas fragilidades, camaradas que mobilizavam, já na segunda metade dos anos de 1970, as forças progressistas da cidade e do Estado. No exercício do poder, descobriram diferenças de percepção e limites das aproximações com outras forças políticas e dos pactos gestados, ao ponto de se distanciarem para, mais tarde, se reencontrarem; Arthur Neto como prefeito, e Felix Valois, em cargo na equipe administrativa. Permanecem ligados.