Manaus, 3 de julho de 2025
×
Manaus, 3 de julho de 2025

Cidades

Advogados da família de Julieta tentam reclassificar o assassinato da circense como feminicídio

A primeira audiência de instrução do caso Julieta Hernández acontece nesta sexta-feira (30).

Advogados da família de Julieta tentam reclassificar o assassinato da circense como feminicídio

(Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Manaus (AM) – A primeira audiência de instrução do caso Julieta Hernández, que acontece nesta sexta-feira (30), marca a luta de familiares e advogados que querem reclassificar o assassinato de artista circense como feminicídio. As informações são da Folha de São Paulo.

O novo promotor de justiça do caso da artista assassinada em Presidente Figueiredo, no interior do Amazonas, segundo a Folha, teria recusado a tese de feminicídio.

Ao Portal AM1, o advogado da família de Julieta Hernández, Carlos Nicodemos, explica os motivos de defender a tese de reclassificação do caso como feminicídio. Na visão da defesa, existem “questões de gênero” que foram ignoradas, dando lugar a uma definição de latrocínio.

“No nosso entendimento, existem elementos hoje que determinam o feminicídio em razão de um dolor específico de agressão da condição dela de vítima, por questões de gênero, e que isso foi ignorado para dar lugar a uma definição de latrocínio. Então, para nós, existem elementos hoje suficientes e nós indicamos outros meios de prova que poderão robustecer essa tese”, defende.

Subnotificações

O Anuário de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pontua casos de subnotificação que podem dar uma sensação de ‘falsa’ segurança às mulheres em determinada região. No documento, o estado do Ceará é utilizado como exemplo, onde a taxa de feminicídio é de 0,9, enquanto a unidade federativa ocupa o quarto lugar do país com a maior taxa de homicídio de mulheres.

“O Ceará tem a quarta maior taxa de homicídio de mulheres (5,8) em 2023, totalizando, 264 mortes. E ainda assim, sua taxa de feminicídio é de 0,9. Isso significa que somente 15,9% dos homicídios de mulheres foram registrados como feminicídio, o que corresponde à menor proporção do Brasil, cuja média é de 37,3%”, explica o documento.

Ao Portal AM1, a antropóloga Flávia Melo, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), perguntada sobre as situações de subnotificações que podem prejudicar ações mais eficazes no enfrentamento ao feminicídio, diz que interpreta como misóginas algumas percepções perpetuadas pelo judiciário.

“Nós, pesquisadoras feministas, temos demonstrado há muitas décadas a persistência de esquemas de percepção misóginos no judiciário brasileiro que historicamente prejudicam as mulheres na arena criminal, mas não apenas. Crimes contra mulheres são frequentemente vistos como crimes menores (menos graves) quando comparados a outros que recebem mais atenção e investimentos públicos”, entende.

Lei do Feminicídio 

Partindo desse princípio, a antropóloga explica que, para um caso ser qualificado como feminicídio, pela Lei n.º 13.104/2015, é necessário que o crime seja cometido contra a mulher por razões condicionadas ao sexo feminino.

“Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, determina a Lei.

Nesse sentido, Melo destaca a importância de classificar o caso da artista Julieta Hernández como um caso de feminicídio, isso porque explicitaria à sociedade a condição de subordinação e do subjugamento dos corpos femininos.

“Classificar o caso de Julieta como feminicídio fala mesmo de dosimetria da pena, e muito mais sobre a necessidade política de explicitar para a sociedade que crimes como esse – estupros seguidos de assassinatos – nos falam da subordinação feminina, do poder patriarcal de subjugar de corpos femininos e de impedir-nos da liberdade de ir e vir”, defende antropóloga.

Ministério das Mulheres

No mês de junho de 2024, o Ministério das Mulheres publicou uma nota oficial onde também defendia a importância da classificação do caso como crime de feminicídio. Segundo a pasta, o pronunciamento vai ao encontro da reivindicação da família e dos movimentos feministas. A partir dessa interpretação, o Ministério entende que classificar o crime como feminicídio é um passo contra a impunidade ou minimização do crime.

“O Ministério das Mulheres vem a público manifestar apoio à ação articulada pela União Brasileira de Mulheres (UBM) e os familiares de Julieta Hernandez, palhaça venezuelana que viajava de bicicleta pelo Brasil quando foi covardemente assassinada no município de Presidente Figueiredo, no Amazonas, para que o crime seja reconhecido como feminicídio”, defende Ministério das Mulheres.

Para a fundadora do Observatório de Violência de Gênero do Amazonas, Flávia Melo, classificar o crime como latrocínio (roubo seguido de morte), ignorando a classificação como feminicídio, acarretaria desvantagens e perdas imensuráveis à luta pela igualdade de gênero.

“Com o Latrocínio, cuja pena é potencialmente maior, vence (mais uma vez) o punitivismo, mas perde a luta pela igualdade de gênero, pois esta classificação nos impede de visibilizar as formas concretas de manifestação do menosprezo às mulheres”, defende Melo.

18 anos da Lei Maria da Penha

Em meio ao mês em que a Lei Maria da Penha completa 18 anos, o advogado da família de Julieta, Carlos Nicodemos, explica que a questão na pena não é o cerne da tese, e sim a impunidade a um crime motivado pelo gênero da vítima.

“Na verdade, o que está em xeque não é a questão da pena, mas a questão da impunidade frente a um fato que é um assassinato com motivação de gênero. Essa é a questão principal, a pena a ser aplicada será a justa, aquela que determina uma reprimenda necessária, mas acima de tudo, no contexto hoje dos 18 anos da Lei Maria da Penha e da violência contra a mulher, é importantíssimo que o caso seja assim entendido”, explica Nicodemos.

Apesar do entendimento contrário ao defendido pelo Ministério Público, o advogado acredita que não houve, necessariamente, uma “falha” de interpretação da Lei do Feminicídio, mas sim uma “interpretação estreita sobre os fatos”.

“Fato é que a gente tem uma cultura na justiça de pouca efetivação dos parâmetros e das normas que circunscrevem o feminicídio. Essa é uma literatura jurídica recente que coloca como um desafio, inclusive para os tribunais, o CNJ [Conselho Nacional de Justiça], fazer processos de formação e empoderamento dos seus atores para que eles possam ter uma compreensão mais clara e objetiva do que significa esse crime e a importância de ser assim denominado para muitos fins, inclusive de política criminal, para trabalhar indicadores de prevenção em relação ao próprio enfrentamento na estrutura da sociedade brasileira”, explicou o advogado ao Portal AM1.

LEIA MAIS: