Manaus, 25 de abril de 2024
×
Manaus, 25 de abril de 2024

Brasil

Como índios brasileiros sofreram com arma biológica em colonização

O impacto devastador de doenças trazidas pelos europeus ao Brasil entre os índios é largamente conhecido

Como índios brasileiros sofreram com arma biológica em colonização

Um avião sobrevoa os campos e despeja dos céus brinquedos infectados pela gripe. Criadores de gado atraem uma tribo desavisada a um povoado que enfrenta uma grave epidemia. Fazendeiros largam, estrategicamente pelo chão, mudas de roupa contaminadas com varíola.

Leia mais: Brasil é denunciado na ONU por risco de genocídio de índios

São esses alguns dos relatos registrados ao longo da história do Brasil que apontam para o uso proposital de doenças como armas biológicas em batalhas contra povos indígenas e que teriam contribuído para dizimar grande parte das tribos que existiam originalmente no país.

Ao descrever a investida de plantadores de cacau sobre as terras reservadas às tribos Kamakã e Pataxó, na Bahia do início do século 20, o antropólogo Darcy Ribeiro conta no livro Os índios e a civilização que os invasores lançavam mão de “velhas técnicas coloniais, como o “envenenamento das aguadas” e “o abandono de roupas e utensílios de variolosos onde pudessem ser tomados pelos índios”.

Para Rafael Pacheco, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP (Cesta), o uso de objetos contaminados foi o principal método usado para inocular doenças entre os indígenas desde o início da colonização.

“Além da similaridade de métodos, o conflito de terras era a motivação mais comum para esses episódios”, explica.

O impacto devastador de doenças trazidas pelos europeus ao Brasil entre os índios é largamente conhecido. Além da baixa imunidade, os hábitos coletivos e a falta de tratamentos tornavam a população nativa especialmente vulnerável a doenças trazidas por estrangeiros, como conta o professor de antropologia da Universidade Estadual de Santa Cruz Carlos José Santos.

“Povos inteiros foram massacrados pelos contágios de doenças infecciosas. Aliás, muitos foram considerados extintos por elas, como é o caso dos goitacá”, diz Santos, que é indígena e conhecido pelo nome Casé Angatu.

Doenças como varíola, sarampo, febre amarela ou mesmo a gripe estão entre as razões para o declínio das populações indígenas no território nacional, passando de 3 milhões de índios em 1500, segundo estimativa da Funai (Fundação Nacional do Índio), para cerca de 750 mil hoje, de acordo com dados do governo.

As causas dessas epidemias são comumente tratadas pela história como involuntárias. Há, no entanto, diversos relatos de infecção proposital de tribos indígenas no país: entre os timbira, no Maranhão, os botocudos, na região do vale do Rio Doce, os tupinambá e pataxó, na Bahia, os cinta-larga, em Mato Grosso e Roraima, entre vários outros.

Segundo a antropóloga Helena Palmquist, que pesquisa genocídio indígena no Brasil, o método de infecção era comum. “É uma estratégia muito difícil de provar, e os casos aconteciam em rincões, no Brasil profundo, lugares em que ninguém queria entrar.”

“Essas histórias não são desconhecidas, só não são levadas a sério. Os casos não foram apurados e nenhuma medida foi tomada, esses episódios eram divulgados pelos órgãos oficiais como fatalidades”, afirma Pacheco.

O massacre dos Timbira

O caso mais bem documentado aconteceu com índios timbira no Estado do Maranhão, por volta de 1816. Na região, eles travaram, ao longo de décadas, uma guerra violenta contra criadores de gado, que vinham invadindo suas terras desde o início do século 19.

Em meio às constantes escaramuças, era comum que tribos selassem a paz com povoados brancos em busca de uma aliança contra povos inimigos. Foi o que aconteceu com os canela, ou Kapiekrã, que, inicialmente derrotados em batalha pelos Sakamekrã, acabaram por vencê-los com a ajuda de aliados brancos.

Em determinado ponto, a proximidade desses índios com os ditos civilizados foi tão grande que a tribo largou as terras onde vivia para morar junto a eles. Os brancos, por sua vez, esperavam receber uma ajuda financeira do governo para sustentar os novos agregados.

Outros relatos

Feito em 1967 e só divulgado ao público 45 anos depois, o Relatório Figueiredo, produzido pelo procurador Jader Figueiredo a pedido do governo militar, relata o uso de vários tipos de violência contra os indígenas por membros do órgão que deveria resguardá-los, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Entre os assassinatos, abusos sexuais, casos de tortura e corrupção denunciados, o relatório ressalta as acusações de que uma tribo de índios pataxó do sul da Bahia teria sido levada à extinção por uma infecção proposital.

“Jamais foram apuradas as denúncias de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo”, aponta o documento.

Em seu vasto relatório de 2014, a Comissão Nacional da Verdade identificou entre as causas para a morte de cinco mil índios cinta-larga em Mato Grosso e Rondônia, a partir da década de 1950, “aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola”, enviados por seringalistas, mineradores, madeireiros e garimpeiros, com a conivência do governo federal.

Transmissão não proposital e omissão

Para o antropólogo Casé Angatu, as doenças serviram desde o início aos interesses dos colonizadores.

“As contaminações, propositais ou não, serviram e servem para espoliar terras indígenas e para o contínuo genocídio dos povos originários”, afirma.

Palmquist classifica inclusive como criminosa a política de aproximação de tribos indígenas instalada durante a ditadura, que teria sido diretamente responsável pelo extermínio de milhares de índios.

“Muito rapidamente, a Funai se transformou numa promotora da atração, pacificação e contato com as tribos indígenas, num momento em que já se sabia quais eram as consequências dessa política.”

No Relatório Figueiredo, a omissão é também destacada como um dentre os vários crimes cometidos por membros do SPI. “A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato”, diz o documento.

 

 

*Com informações BBC News