Manaus, 28 de junho de 2024
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Cidades

‘Espectadores do caos’: por que tragédias chamam tanto a atenção das pessoas?

É comum presenciar locais de crimes em Manaus cercados de pessoas “admirando” ou fotografando como se estivessem assistindo a um espetáculo.

‘Espectadores do caos’: por que tragédias chamam tanto a atenção das pessoas?

Locais de crimes e acidentes ficam cercados de curiosos - (Foto: Divulgação)

Manaus (AM) –  É comum presenciar aglomerações em locais de crimes em Manaus, onde curiosos se reúnem ao redor de corpos e cenas de violência, como se fossem espectadores de um grande espetáculo. A fascinação humana por tragédias é um fenômeno complexo que envolve aspectos psicológicos, sociais e culturais, segundo especialistas.

A psicóloga  Elisangela Marques explica que a atração pelo sofrimento alheio pode ser compreendida com alguns princípios psicológicos fundamentais.

“O fenômeno pode ser explicado pela teoria do voyeurismo, onde o ser humano tem uma tendência natural a sentir curiosidade pelo desconhecido e pelo bizarro. Além disso, existe o efeito de distanciamento emocional, que permite que as pessoas observem situações trágicas sem se envolver emocionalmente, como uma forma de proteger a si mesmas do impacto psicológico”, diz a psicóloga.

Esse comportamento, segundo a psicóloga, também pode ser associado à adrenalina e ao estímulo que cenas de violência provocam. “A exposição à violência ativa áreas do cérebro relacionadas ao medo e à excitação, levando as pessoas a se sentirem atraídas por tais situações. É uma resposta fisiológica que, infelizmente, leva muitas pessoas a se tornarem insensíveis ao sofrimento dos outros”, comenta Marques.

O papel da mídia e a cultura da banalização da violência

Para o cientista social e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Luiz Antônio Nascimento, a grande mídia desempenha um papel crucial na normalização e banalização da violência. Programas de televisão e rádios, que frequentemente exibem cenas de crimes e acidentes com uma abordagem sensacionalista, contribuem para a formação de uma cultura na qual a violência se torna um espetáculo.

(Foto: Divulgação)

“Esses programas de rádio sensacionalistas que todos os dias, de segunda a sábado, às vezes até domingo, reproduzem essas cenas. Então, aquilo que deveria ser algo refutável, algo pejorativo, algo desprezível, algo que produzisse medo, produzisse asco, produzisse horror, virou um espetáculo. Em grande parte por conta da publicação por meio das mídias”, pontua.

No Brasil, esse tipo de conteúdo é amplamente divulgado, o que contrasta com países como França e Alemanha, onde há uma restrição maior na exibição de cenas violentas.

“Nesses países, não tem programas sensacionalistas mostrando na hora do almoço, na hora da merenda da tarde, no início da janta, corpos de pessoas recém-assassinadas ou que morreram em mortes violentas no trânsito. Então, o que acontece? Essa população foi tornando normal e banal. Combinado com isso, com o advento da internet, com o advento de você poder produzir a própria informação, entre aspas, faz com que as pessoas se sentem confortáveis e à vontade de parar no meio do trânsito para filmar ou para fotografar uma cena que tem alguma vítima agonizando no asfalto ou alguém assassinado e mandam para outras pessoas pelas redes sociais”, diz o sociólogo.

Conforme Luiz Antônio Nascimento, essa exposição constante à violência cria uma dessensibilização na qual o horror e o choque iniciais são substituídos por uma aceitação passiva.

“Obviamente que isso não é só responsabilidade da grande mídia, mas por óbvio não dá para tirar dela uma grande responsabilidade, que é fazer uma escolha de dar a visibilidade aquilo que a gente vai chamar aí nas políticas de comunicação, da difusão do mundo cão. Então não há nenhuma novidade, esse é resultado direto de um tipo de sociedade que banaliza a violência, que naturaliza a violência e que se sentem confortáveis em difundi-la”, reforça.

Preferiram filmar em vezes de ajudar

Um exemplo recente dessa fascinação mórbida aconteceu no município de Tabatinga, no interior do Amazonas, no dia 6 deste mês, onde um jovem de 19 anos faleceu afogado enquanto diversas pessoas filmavam a tragédia em vez de prestar socorro. Segundo os especialistas, esse caso ressalta não apenas a insensibilidade das pessoas, mas também a influência das redes sociais, que incentivam a produção e compartilhamento de conteúdo chocante e trágico.

(Foto: Reprodução)

O caminho para a mudança

Para mudar essa realidade, é necessário um esforço conjunto da sociedade para refutar a banalização da violência e promover uma cultura de empatia e solidariedade. A psicóloga Elisângela Marques sugere que “mudanças significativas podem ser alcançadas por meio da educação e da sensibilização das pessoas. É crucial que a mídia adote uma postura mais ética e que a sociedade, como um todo, faça um movimento em direção à humanização do outro”.

Segundo Luiz Antônio Nascimento, a capacidade de adaptação do ser humano é notável. Quando há mudanças no comportamento individual ou nos movimentos sociais que incentivam essas mudanças, o comportamento humano também se ajusta.

“Há algumas décadas, era comum que crianças fossem disciplinadas com violência por adultos — pais, mães, irmãos, professores e até vizinhos — sem que isso fosse questionado. Hoje, a sociedade evoluiu nesse aspecto, impondo limites claros e rejeitando a violência contra crianças. Atualmente, qualquer criança de 5 ou 6 anos sabe que um adulto não pode simplesmente espancá-la. Essa mudança de comportamento em relação às crianças demonstra uma evolução importante na sociedade. Então a sociedade mudou de comportamento em relação às crianças, o que precisamos fazer em relação à violência banal, dar um basta”, conclui.

 

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