Manaus, 30 de abril de 2024
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Manaus, 30 de abril de 2024

Brasil

História da resistência ao Golpe de 1964 é estudada

A resistência gerada contra os atos militares é vista como uma das maiores lutas populares de nossa história

História da resistência ao Golpe de 1964 é estudada

Tanques do Exército toma Brasília nos primeiros dias de abril de 1964 (Foto: Reprodução)

MANAUS (AM) – A articulação entre as elites brasileiras (empresariado e militares) deu início em 31 de março de 1964 a um regime de exceção que passou a ser chamado de Ditadura Militar, período que perdurou até meados dos anos de 1980.

Ainda que se discuta a nomenclatura (golpe, revolução, contrarrevolução), o período vem perdendo sua aura de “era de ouro” na história brasileira, por meio de estudos e análises dos movimentos de resistência, iniciados após a abertura política (fins dos anos de 1970) e agora mais facilmente debatidos.

Com quase 60 anos, as ações militares que tomaram o Estado e fecharam o Congresso Nacional a partir de 1 de abril (data omitida pelos livros oficiais até pouco tempo para que o regime não fosse associado ao Dia da Mentira), são temas de debates e discussões. E a resistência gerada contra os atos militares é vista como uma das maiores lutas populares de nossa história.

Tanques em Brasília, primeiro de abril de 1964 (Foto: Jornal do Senado)

Louvando a resistência

Ademir Ramos, professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui, do Núcleo de Cultura Política do Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (NCPAM/UFAM), não é nada amistoso com as políticas implantadas pelo regime iniciado em 1964. “Com o golpe consumado, os militares implementaram uma política de endividamento da nação e, sob as botas militares, o arbítrio, a tortura e a afronta aos direitos humanos pelas forças políticas”, critica o professor.

“As elites e os militares de alta patente enriqueceram com a Transamazônica e em nome de todos esses ‘assaltos’ à economia popular. Sofremos esse impacto aqui sobretudo na invasão da Amazônia e os povos originários sofreram mais ainda com a Transamazônica, inclusive os Waimiri Atroari buscam, junto à Justiça, uma forma de reparação do Estado brasileiro em relação à violação dos seus direitos”, afirma o coordenador e articulista do Núcleo de Cultura Política do Amazonas da Universidade Federal do Amazonas. Membro fundador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI-CNBB) – Secretaria Regional Norte I.

Para o professor Ademir Ramos, a Transamazônica trouxe impactos negativos aos povos originários da Amazônia (Foto: Reprodução/Facebook)

Ramos, ativista atuante, louva os focos de resistência que brotaram no país em seu momento mais crítico. “Houve reação da esquerda em 1964, no movimento estudantil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a União Nacional dos Estudantes (UNE), alguns segmentos da Igreja Católica e sobretudo dos movimentos culturais”.

Mas para o antropólogo, é necessário estar alerta. “O mais recente ex-presidente veio dos EUA, depois de fugido, para celebrar o golpe de 1964. Essa celebração foi promovida pelo Clube Militar do Rio de Janeiro e o ex-presidente tem a ideia de dar continuidade ao acontecido em 8 de janeiro em Brasília”, afirma Ramos.

Historiografia busca nomes

Historiador e integrante do grupo Laboratório de Estudos sobre História Política e do Trabalho na Amazônia (Labuhta), Thiago Queiroz tem sua base de estudos nas disputas eleitorais de 1974 a 1983, mas a imersão no período embrionário do último regime ditatorial militar no Brasil foi inevitável.

De acordo com Queiroz, não há discussão: foi golpe e é necessário dar nomes. “Na questão da historiografia não se discute mais ‘se foi golpe ou não’ ou ‘se houve ditadura ou não’, mesmo porque todos os fatos estão comprovados e documentados. Então o que se discute, hoje em dia, é a participação de determinados grupos que precisam ser culpados e não encaixados no grupo inteiro. Por exemplo, quando se fala em ‘elite brasileira’ não se dá nomes. Agora já existem trabalhos que colocam o empresariado nacional, os grupos militares e as ações do presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson no mesmo balaio enquanto arquitetos do golpe. Hoje a busca histórica é mais em cima de dar uma nomenclatura pontual para os grupos diretamente envolvidos”, explica.

Thiago Queiroz, historiador: ‘Pela imprensa da época, o governo militar é visto como um interventor de progresso regional’ (Foto: Reprodução/Facebook)

Para o historiador, no berço do regime de exceção iniciado em 1964, os militares não tinham projeto nenhum. Em um primeiro momento, o objetivo era tirar o então presidente João Goulart (1961-1964) para que os interesses externos, declaradamente norte-americanos, ganhassem apoio e força política.

“De imediato, o governo instalou fortes arrochos salariais, aumentando impostos e cortando direitos políticos, conquistados ao longo do tempo. Esse é o retrato dos primeiros momentos da Ditadura. O problema é que quando se opta por essa estratégia econômica, o efeito da concentração de renda quebra o mercado consumidor da grande massa, levando o país a uma recessão regular”, comenta Queiroz.

“Quando chegamos em 1968, o arrocho estava tão forte, que se fez necessário pelo regime o uso de um aparato militar para controlar as reivindicações naturais que vieram a medida em que eles (o governo) colocavam uma imposição de arrocho e de altos impostos, então, a reação às reivindicações populares viria, mas para que isso acontecesse, eles precisavam de um bode expiatório”, afirma.

Segundo Queiroz, o bode expiatório para uso de força do Estado foi, usando as teorias conspiratórias, a invasão do Brasil pelos comunistas. “Em 1968, por exemplo, usaram esse argumento de um suposto descontrole social para implantar o Ato Institucional n. 5 (AI-5) que acabou com os habeas corpus e instaurou o controle total do Estado utilizando o discurso de segurança nacional”, ressalta.

Resistência cultural em Manaus

Para o historiador, curiosamente na questão cultural, analisando o caso de Manaus, houve vários eventos musicais e literários de resistência, que apesar de sofrerem com a censura igual a que acontecia em outros estados, teve suas peculiaridades só agora estudadas. “A questão é que, apesar de vários eventos, isso não queria dizer necessariamente que as pessoas tinham espaço para criticar a realidade. Os censores avaliavam esses materiais inscritos nos festivais que precisavam desse aval, levando em consideração a moral e os bons costumes, para serem exibidas ao público”.

“Não podemos uniformizar, pois a ‘ditadura de São Paulo’ teve uma expressão maior. Os livros que lemos sobre o período sempre fizeram uma leitura do Brasil a partir deles (SP), dos movimentos de lá. A histografia do que ocorreu no Amazonas está sendo feita agora”, sinaliza Queiroz.

Houve resistência, mas esta ainda está sendo localizada e reconstituída pelos historiadores. Mas segundo Queiroz “se há pouco conteúdo sobre o tema nos livros de história, na imprensa de massa, há menos ainda” e o que se encontra é totalmente enviesado à direita e ao discurso do regime militar.

“Analisamos até o momento que a questão do discurso progressista para a região de ‘integrar para não integrar’ (lema da Zona Franca de Manaus), de derrubar a floresta para trazer o progresso vendeu bem por aqui. E se espalhou para o Amapá, por exemplo, onde se encontrou um padrão em comum com o Amazonas de aceitação da Ditadura. Ou seja, articulado com a grande mídia através do A Crítica e Jornal do Comércio, esse discurso vendeu muito bem”, cita Queiroz.

“Pela imprensa da época o governo militar é visto como um interventor de progresso regional. E os movimentos sociais chegam à massa por outros caminhos, em uma piada ou em uma charge publicada na grande imprensa que satirizava um grupo ou um movimento de pessoas como o da poesia, como o Clube da Madrugada e de músicos que eram ‘detonados’ pela mídia manauara da época. Essa história da resistência no Amazonas ainda está sendo escrita”, enfatiza o historiador, que também é músico.

Thiago resume que abraçando o discurso de trazer a civilização: “A elite amazonense, articulada com os militares e o discurso desenvolvimentista, vendeu muito bem a ditadura no Amazonas através dos jornais”.

O início do fim do regime

Conforme conta Queiroz, a falta de apoio ostensivo dos EUA decretou o início do fim do regime. “Hoje existem documentos claríssimos de que presidentes como Ernesto Geisel (1974-1979) autorizou a execução de opositores. Documentos da CIA (serviço secreto dos EUA) que só foram liberados em 2018 mostram claramente como o processo foi feito: com mortes autorizadas pelo governo. Os executados recebiam o ‘título’ de inimigos do Estado, terroristas e afins. Quando os EUA, articuladores do golpe, viram a condução do processo, onde se observava que os militares claramente haviam perdido a mão, começaram a tirar o corpo fora, trabalhando as relações com o Brasil por outras dimensões. Já com intervenções mais modestas, os governos Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979), extremamente nacionalistas, usam do ufanismo patriótico para cegar os processos, principalmente os de caça aos opositores”, explica.

Segundo o historiador, a abertura política teve lamentos dos descontentes: “Para a saída da ditadura, tendo a experiência de outros países, seria melhor, para o regime, que essa despedida fosse conduzida pelos militares. Geisel, então, vem com o projeto de fazer isso gradualmente, em lenta distensão, conduzida pelos militares e mantendo alguns privilégios, como as pensões vitalícias e anistias para que não fossem punidos. Ainda assim, essa saída de cena causou arrependimento de uma ala mais radical, que depois acabou por entender que essa foi a melhor escolha”, comenta.

Outro ponto importante desse processo foi o Ato Institucional n. 2 (AI-2), que em 1965, instaurava o bipartidarismo, montando de um lado a Aliança Renovadora Nacional (ARENA – partido que dava sustentação política ao regime militar) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB, que se vendia como moderado). Mas, segundo Queiroz, estes nunca se separaram: “o MDB só servia para legitimar a impressão de que havia uma democracia vigente. Nenhuma ditadura se vende como uma ditadura, o que se põe na vitrine é ‘uma democracia com intervenções’”.

Queiroz enxerga aí a força (mesmo que oculta pela grande imprensa) da resistência no Amazonas. “O crescimento do MDB, quando começa a abertura, vem em virtude dos movimentos sociais em determinados locais do país. “Então, quando o partido começa a crescer no Amazonas, vale salientar que essa busca de enfrentar o governo militar é por haver um apoio das sociedade civil ali. Se houve uma mudança na pauta emedebista, como nas denúncias sobre as torturas da PM, não foi ‘de coração’: a política observou os movimentos crescendo. Assim o partido anteviu que, apesar da questão econômica está indo para um lado, a política está sendo direcionada para outro. É quando o partido começa a luta para acabar com essa dicotomia . Ficou difícil aceitar o discurso militar de que ‘prendemos e torturamos em nome da economia (e contra o comunismo)’. O MDB tem seu papel na instalação da Ditadura, mas consegue se articular como progressista na virada 1974-1975 em virtude dos movimentos sociais”, finaliza o historiador.

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