Manaus, 17 de maio de 2024
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ISMAEL BENIGNO – O ano que não acabou

ISMAEL BENIGNO – O ano que não acabou

Na última segunda (29), o jornalista Xico Sá publicou uma charge do cartunista Henfil, morto em 1988, com os dizeres “Tô vendo uma esperança! Diretas Já!” e decidi tentar descobrir em que ano estamos. Aos 43, a gente tem mais lembranças do que aspirações, então fiz uma rápida pesquisa em alguns detalhes de uma época que vivi quando menino. Queria lembrar dela.

A Graúna, personagem do desenhista, é a dona da esperança no cartum ressuscitado por Sá. Na época chamada de ‘estertores do regime’, Figueiredo já preparava suas éguas para ir embora, Tancredo morria às vésperas de tomar posse como presidente, depois de vencer Paulo Maluf no Colégio Eleitoral – numa eleição indireta – e o brasileiro tinha, então, a primeira chance de votar desde o golpe de 1964. Quis o destino que, nessa volta dos porões da barbárie, escolhêssemos Collor para presidente. Não posso me queixar, votei no Afif só por causa daquele “juntos chegaremos lá!”

Estamos em 2017, 30 anos adiante, e acho que já tivemos filmes de ficção científica, com carros voadores e armas a laser, ambientados em anos anteriores ao atual. Ou seja, estamos além do futuro que enxergávamos àquela época. Sim, já fazemos vídeo-chamadas em telefones de bolso. Sim, já temos GPS no carro, cafeteiras que desligam à distância, privadas que tocam música e várias outras inutilidades que previmos quando os carros tinham aquele vidrinho quebra-vento.

E temos o resto. O Brasil ainda mata 60 mil pessoas por ano, não de fome nem de varíola, mas por armas que nem a laser são. No século 21, a carnificina nossa de cada dia ainda é na base da pólvora e do chumbo. E temos o resto, gritando por providências, enquanto dividimos o problema em partes e escolhemos a que choca mais.

Um dia depois da manifestação de artistas e sindicatos em defesa das ‘Diretas Já!’ versão 2017, a publicação de Xico Sá ilustrava algo recorrente, mas talvez pouco percebido, na polarização que a derrocada do PT trouxe ao país desde 2005, quando estourou o escândalo do Mensalão. Porque ficava claro, ao menos para mim, que a grande tara nacional é o passado – ou, como disse o genial Millôr Fernandes décadas atrás, “o Brasil tem um enorme passado pela frente”.

Na ‘cracolândia’ virtual das redes sociais, ficamos divididos entre os que gostariam de ser polícia para bater em ‘vagabundos’ e os que gostariam de apanhar da polícia e ser chamados de ‘vagabundos’. De um jeito ou de outro, estamos divididos em dois times de shorts curtos e imagens em preto e branco de 1968, quando a ditadura escancarou-se com o AI-5. O importante, parece, é estarmos todos no passado, de forma que, daqui a 30 anos, possamos contar aos nossos netos como foram os anos de chumbo da década de 60, mesmo que tenhamos nascido na de 90. Daqui a 30 anos, vamos contar como foi a vida dos nossos pais.

Uma explicação para esta tara pode ser a falta de coragem, disposição ou capacidade nacional para o debate de questões importantes que ainda batem à porta do país como os índices da educação, a falta de empregos e o genocídio anual nas periferias, nos rincões e nas grandes cidades, apenas para citar alguns exemplos. E o que discutimos, enquanto ainda nos matamos aos montes sem saber conjugar o verbo ‘matar’, é se podemos ou não dormir com pessoas do mesmo sexo, se nosso cachorro tem alma, se usar turbante é correto ou não.

É de se entender, portanto, que seja mais charmoso fingir que estamos em 64, com a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de um lado, representada aqui por gente paulistana de óculos de sol e camisa amarela numa manhã de domingo, ou pelos grupos guerrilheiros que lutavam por uma “Ditadura do Proletariado”, aqui representadas por grupos como a Mídia Ninja, os Jornalistas Livres ou outros da mesma espécie. Ocorre que, antes de simpatizar com os valores defendidos por coxinhas ou mortadelas, é preciso combinarmos que, se as opções são essas, o Brasil vai mesmo muito mal.

Somos 207 milhões de pessoas – descontadas as 60 mil que serão assassinadas este ano – cujos problemas urgem há décadas e, em vez de debatermos o país que queremos para os nossos netos, estamos decidindo como será a vida dos nossos avós.

Estamos tentando atravessar a Paulista de 64, com tanques verdes de um lado e cartilhas do Marighella do outro. Suportando, entre a necessidade de se manter empregado, discursos de rua sobre a revolução de 64 ou as reformas de base propostas por Jango. A gente não tem água em casa, mas tem que ouvir falar de reforma agrária e educação cristã; A gente não tem amoxicilina no posto de saúde, mas tem que aguentar em silêncio, nas conversas de domingo ou nas redes sociais, os amigos que falam em matar bandido e os amigos que falam em quebrar tudo porque são humanistas. Fomos instituindo um DOPS particular e imaginário, para onde são mandados os amigos que teimam em não tomar lado, porque acreditam piamente que todos estão errados. Eis um trunfo real do PT: enfim, o brasileiro passou a se odiar por causa de política. E isso não é ruim, acredite. O problema é a qualidade do ódio.

Nessa travessia da Paulista, a gente vê mauricinhos de bermuda cáqui e chave do carro pendurada na cintura, filho de bochecha rosa no colo, pregando o fim “dessa raça” que assaltou o país. Do outro, com a vantagem da narrativa das pessoas bacanas, gente democrata, pluralista e empática que não hesita em chutar, xingar, ofender e bloquear quem escolheu outro time – ou quem nem gosta de futebol.

Faltaram as Belinas, as Veraneios e as Brasílias para brindar o nosso futuro político. Num país de 207 milhões de pessoas e no qual todos já possuem celular e conta no WhatsApp, a gente continua ouvindo as mesmas sirenes de polícia, as mesmas frases feitas, as mesmas baboseiras anticapitalistas e anticomunistas. A gente briga pelo sindicalista e pelo neto do Tancredo, a gente ainda vê Maluf no jornal, a gente ainda lê sobre Moreira Franco e Iris Rezende, Sarney, Renan Calheiros, Luiza Erundina, Benedita da Silva, Jair Bolsonaro…

Na rua de verdade, faltam as Belinas, as Veraneios e as Brasílias. Sobram os índios pedindo esmolas, as escolas fechadas pelo tráfico, os hospitais sem leito e os tiroteios em qualquer canto. Tudo isso esperando que simplesmente decidamos pensar diferente do que nossos pais e do que nossos professores tentaram nos ensinar, só para começo de conversa.

Porque, à falta de vontade de debater os problemas que temos para resolver, o que parece é que decidimos pelo caminho mais fácil de pegar uma cadeira de macarrão como banco, uma antena de tv como câmbio, uma tampa de panela como volante e três sandálias de borracha como pedais, para brincar de dirigir o carro do papai no chão da sala, o que fazia muito sentido em meninos de 6 anos de idade no Brasil desconectado das décadas de 60 e 70.

Hoje a meninada quer brincar de ditadura numa democracia, no mais das vezes embalada por pais que buscam um fim para a época da ditadura militar, mas fazem isso criando finais alternativos – ou pior, alguns não querem um final. Além de toda a carnificina estatal e das histórias de sofrimento e abuso policial, o principal subproduto da cultura popular da ditadura é a sua retroalimentação. Infelizmente, há gente cuja vida perderia o sentido sem a tampa da panela, a antena, a cadeira de macarrão e as sandálias no chão da sala. Infelizmente o 1964 particular de muitos brasileiros relegou seus próprios filhos a lutar contra a sombra de anões do passado. A arrogância gerida na ignorância do banco de faculdade quer nos ensinar que o Brasil deixou tudo pra trás, à exceção de 1964, o ano que nunca vai acabar. Podemos mexer com tudo, menos com 1964.

É um tanto difícil explicar o que tem causado essa infantilização do debate político nacional, mas uma boa hipótese é a de que a ditadura militar brasileira terminou sem clímax e sem os créditos subindo na tela. Seus criminosos vão morrendo de velhice e suas vítimas foram condenadas, além de a todo o horror e violência, a depender da violência sofrida e das narrativas criadas como muletas morais.

Sim, brincar de polícia e bandido pode fazer bem à solução de traumas familiares. Mas essa narrativa acaba impedindo o país de se ater a questões urgentes que falam alto à vida de crianças que, no lugar de querer mudar o futuro, acabam herdando o passado alheio como ideal de vida. Sempre existirá, felizmente, um lugar reservado à ditadura militar brasileira na memória nacional, nos livros, nos documentos, dos depoimentos e nos legados de vida de pessoas que sobreviveram.

Mais do que nunca, o Brasil vive as urgências de sempre no nível de educação, saúde, segurança e emprego. E está tentando resolver isso jogando videogame, brincando de polícia e bandido no ar-condicionado de casa. E pior, configurando o jogo para o modo “iniciante” e achando que a nação pode esperar que ele zere a partida para chama-lo de herói.

O nome do jogo é 1964. O mapa da guerra é o centro de São Paulo ou do Rio. O nível é café com leite, porque as crianças não estão preparadas para morrer.

Sobre isso, mudaram apenas as tecnologias, a conectividade e o nível gráfico da brincadeira que, no fundo, é apenas o bom e velho fuzil feito de cabo de vassoura no quintal de casa. O nível de maturidade é o mesmo.

Assim como os 60 mil figurantes mortos em cada fase do jogo que nunca vamos zerar: 1964.