Manaus, 30 de abril de 2024
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Cenário

Comemorar 354 anos de Manaus é tripudiar os povos indígenas, diz pesquisador

Para Ademir Ramos, essa data não tem legitimidade, porque remete à perseguição, exploração e dizimação da população indígena na Amazônia, que já era habitada.

Comemorar 354 anos de Manaus é tripudiar os povos indígenas, diz pesquisador

(Foto: Semcom/Secom)

Manaus (AM) – No dia em que completa 354 anos, segundo o calendário oficial, a capital do Amazonas recebe muito elogios por suas belezas naturais, culinária e povo acolhedor. Porém, as dificuldades enfrentadas pelos manauaras ultrapassam o tempo com a exploração do trabalho escravo, a economia excludente e a questão politica que não consegue ou não quer resolver os problemas da população.

Quanto a História, segundo o cientista político, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ademir Ramos, essa data não tem legitimidade, porque a data comemorativa dos 354 anos da formação da cidade de Manaus remete para o século XVII.

“Imagina que em 1669, no século XVII, era um campo de perseguição de guerra contra os povos indígenas aqui no Amazonas, aqui na Amazônia porque ainda era província do Grão-Pará. Então nós estamos reportando uma celebração do século XVII, que, na verdade, qualquer celebração nesse tom é um tripúdio às culturas tribais, às culturas originárias”, afirmou Ademir.

Conforme o pesquisador, o século XVII foi marcado pela chamada “guerra justa”, a caça aos índios, que eram trazidos dos altos rios, das altas cabeceiras dos rios para formar os aldeamentos, os currais de índios que serviu de braços para a produção, para a paróquias, para as obras da missão, para as obras coloniais, para construir as obras coloniais.

“É, na verdade, a desestruturação da população indígena. É o que chamamos de redução dos povos indígenas aqui na Amazônia, isso no século XVII, contando com dois braços – o braço missionário, que era a catequese e o abraço armado da colonização, que perseguia, que matava, que buscava os índios em nome da guerra justa, canonicamente justificada e legalmente amparada”, explicou.

No século XVIII, na política pombalina (Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, que exerceu o cargo de Primeiro-Ministro de Portugal) na Amazônia, com perseguição aos índios, de portugalização dos índios, de proibição da língua materna. Todo processo de destruição da cultura em nome da coroa portuguesa e, ao mesmo tempo, a exploração de braços indígenas na Amazônia ocorreu nesse período.

Tudo isso com grande resistência, com luta política do povo manaó, manaú ou manáos, que era a grande população indígena do rio Negro e capitaneada pelo Ajuricaba, líder da nação indígena dos manaós.

“Essa data, na verdade, é o acinte, é um tripúdio aos povos indígenas da Amazônia e, ao mesmo tempo, ela representa o processo da colonização, aquela divisão da política diluviana. Antes e depois do conquistador. O conquistador chega e determina: ‘que comece a história’, negando todo o tempo milenar de ocupação da Amazônia, que envolve desde 2 mil a sete mil anos atrás, que agora estamos vendo nas artes rupestres que estão aparecendo nos sítios arqueológicos no entorno de Manaus”, disse.

Mais de 20 sítios arqueológicos tanto na capital quanto nos arredores de Manaus são documentos vivos que dão testemunho da ocupação desses povos na nossa cultura.

Decadência dos seringais

Na economia, que segundo o professor, se deu por meio do extrativismo do saque, da rapinagem que eram feitas no período colonial, foi sustentada a partir do século XIX com o ciclo da borracha com o extrativismo da borracha que vai até as duas primeiras décadas do século XX.

“Ficamos naquele mundo o extrativismo, que é economia determinante na região aqui na Amazônia, como foi marcado pelo porto de lenha. Na verdade, a decadência dos seringais representou o processo de libertação dos povos indígenas e dos nordestinos que estavam aprisionados nos seringais e que vieram para Manaus para a formação dos bairros São Raimundo, Santa Luzia, Educandos”, disse.

Esses bairros com população extremamente pobre e sem nenhuma infraestrutura não tinham perspectiva futura de desenvolvimento com a população abandonada.

“Isso tudo é um processo libertário, o mesmo fazendo um paralelo com a luta dos escravos, com a luta da emancipação, da mesma forma que o capitalismo industrial se desenvolve na Inglaterra, isso vai impactar na economia escravocrata no Brasil, ao mesmo tempo, quando o capitalismo fordiano se fortalece nos EUA e também isso leva ao fortalecimento aqui no extrativismo da borracha. Quando os ingleses fazem a transferência da borracha para a Ásia, esse povo do seringal é liberto porque é abandonado”.

A decadência da borracha representa um processo dialético de libertação dos povos, libertação como a dos escravos, liberdade sem terra, sem direito, sem bem comum, segundo Ademir.

Os ciclos se repetem

Depois da década de 50, o governo brasileiro começou a discutir a questão de uma área de livre comércio na Amazônia, que o projeto foi aprovado no Congresso Nacional e foi efetivado em 67, durante a ditadura, no governo de Castelo Branco.

Segundo Ademir, a ditadura efetivou, por meio de decreto-lei, a Zona Franca de Manaus (ZFM), mas o projeto não nasceu na ditadura, o projeto veio da década de 50. Então a Zona Franca de Manaus, que foi dando este suporte aqui na economia do Estado e até hoje continua e prolonga-se até 2073.

“O que temos de 57 para cá é a ZFM, e que ao saímos do extrativismo, entramos nesse processo de ocupação da expansão do capitalismo na Amazônia. A ZFM é hoje, se a gente fizer um comparativo entre Manaus e o século XVIII, da formação dos bairros de Londres, a gente vai ver que existe uma profunda comparação perversa daqueles bairros com os bairros de Manaus no início do século XIX, sem estrutura sanitária, morando pessimamente em condições de moradia”, disse.

Embora gere emprego de mais de 500 mil indireto e 120 direto, essa economia, segundo o professor, é muito concentradora, e exclui a maioria dos trabalhadores e isso gera a miséria estruturante, acelerada muito mais com a pandemia.

Para Ademir, a Zona Franca tem que ser repensada a partir de um processo de distribuição e compartilhamento de riqueza. “Do jeito que está, a riqueza é para poucos e a miséria é para muitos. Então é necessário pensar Manaus de uma nova perspectiva e isso pensamos a partir da política,”, disse.

A política deve ser considerada nesse processo, na medida que seja repensada essa realidade de forma objetiva contra a concentração de riqueza, na perversidade da distribuição de renda no Amazonas e na miséria que se multiplica na periferia.

“Isso é papel da política e aí é que está o paradoxo, a política não muda automaticamente, muda a partir da consciência, da participação, da cidadania, se há uma exclusão muito grande no processo, se há uma exclusão muito grande dessa população do processo de decisão, quanto o acesso à escola, saúde, essa população, na verdade, teima em repetir as suas mesmas lideranças e as suas mesmas oligarquias e caímos e continuamos a bater sola da mesma maneira”, disse.

Segundo o professor, é necessário acabar com o pacto da mediocridade entre o senhor de escravo e o próprio escravizado.

“É preciso romper com isso e isso se faz de maneira tal que se tenha cada vez mais investimento em novas lideranças, na qualidade de educação e que a gente possa ter acesso do processo de comunicação, de informação para a formação, para a capacitação de novas inteligências e que possa atuar com responsabilidade nesse processo. É possível isso? Sim, porque sonhar é possível, e nós sonhamos juntos”, concluiu.

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