Manaus, 2 de maio de 2024
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Cidades

Da corrupção à falta de moradia: retrato da tragédia que soterrou e matou Mirela em Manaus

Especialista afirma que falta fiscalização das autoridades para evitar que moradias sejam construídas em áreas de risco

Da corrupção à falta de moradia: retrato da tragédia que soterrou e matou Mirela em Manaus

Foto: Reprodução

Manaus, AM – A pequena Raika Mirela dos Santos Pinheiro, de 7 anos, morreu soterrada na rua Curió, comunidade Fazendinha, após parte da casa desmoronar durante a forte chuva que atingiu Manaus, nessa segunda-feira (17). O caso comoveu a cidade, mas é retrato de um alerta de ocupações irregulares, que devem ser enfrentadas pelo poder público. Além dela, Josiane da Silva Rodrigues, 37 anos, também morreu soterrada na rua Osmarina Martins, na Cidade Nova. Sem dúvida, mortes tão trágicas quanto evitáveis.

Assustada com os estalos da casa, a criança se escondeu para tentar se proteger, enquanto familiares deixavam o imóvel. No entanto, a menina acabou sendo soterrada por parte do imóvel e não conseguiu sobreviver. 

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O acidente que aconteceu no bairro Fazendinha, zona Norte de Manaus, é um reflexo das ocupações irregulares na cidade, que aumentam na medida em que a cidade apresenta um crescimento populacional e não se planeja para dar condições dignas de sobrevivência a seus filhos.

Foto: Divulgação

As ocorrências de deslizamento crescem em dias chuvosos. Somente com a tempestade desta segunda-feira, foram registradas 96 ocorrências. Na última sexta-feira (14), uma residência acabou soterrada após o barraco ceder, no bairro Cidade de Deus, zona Norte de Manaus. Os outros moradores tiveram que deixar os imóveis, por conta do risco de novos deslizamentos.

Ao Portal Amazonas 1, a dona Dorilene afirmou que as autoridades deveriam tomar providências para a segurança da população do bairro, uma vez que foi prometido uma obra de conjunto habitacional para eles. “Já era para ter feito. Isso não é de agora. Passa campanha e nós estamos aqui, damos oportunidades para que eles venham falar com a gente e depois ficamos esquecidos”, disse.

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Como forma de cobrar por melhorias, moradores da Zona Leste fecharam uma avenida, queimaram pneus e galhos. Apesar dessa região não ter registrado deslizamentos, as famílias denunciaram as alagações, além dos riscos à saúde da população. Através das redes sociais, os moradores mostraram o nível da água – que chegou até o joelho – e compartilharam os danos materiais. O igarapé do bairro invadiu as ruas, e até um jacaré foi parar na calçada.

Com o período chuvoso destacando a falta de planejamento do prefeito David Almeida (Avante), famílias sofrem com as alagações, em áreas de risco e temem que as novas chuvas sejam mais violentas. Sem dar prioridade para a população que necessita de auxílio, o prefeito de Manaus segue inaugurando objetos turísticos e colocando as áreas nobres como foco para embelezar a cidade.

Residencial para aliados

Entre os escândalos do primeiro ano de gestão do prefeito David Almeida está a entrega de apartamento do Residencial Manauara. Na ocasião, o chefe municipal contemplou aliados e até parentes com imóveis no recém inaugurado conjunto, apartamentos esses que deveriam ser entregues para a população.

A polêmica da gestão Almeida foi manchete nacional, com uma reportagem especial exibida no Jornal Nacional. Além da entrega de imóveis para os aliados, a reportagem ainda denunciou que empresários com patrimônio de pelo menos R$ 100 mil foram contemplados.

Diante da repercussão nacional, Almeida mandou exonerar os contemplados e ainda afirmou que abriu uma investigação interna, mas não citou como os privilegiados com salários e patrimônio abastados conseguiram passar na frente dos humildes.

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Passado o escândalo envolvendo a entrega de apartamentos, o Portal Amazonas 1 denunciou o abandono dos moradores do residencial. O conjunto foi construído “no meio do nada”, onde não há serviço de segurança, não há linhas suficientes de transporte coletivo, além de não possuir escolas e unidades de saúde.

Foto: Divulgação

“Aqui nós não temos ônibus direto para o centro, o 307 vai até um determinado ponto e retorna para o bairro. Muita gente pega ele somente para ter acesso as avenidas com mais opções de ônibus. Tem muitos moradores que trabalham de madrugada e precisam andar até lá fora para pegar outros ônibus ou ficar aqui e esperar os amarelinhos. Mas, não tem um ônibus aqui que faz um trajeto amplo na cidade. Precisamos de outras linhas e principalmente um que leve até o Centro da cidade”, explicou o morador e autônomo, Antônio Maia.

O problema financeiro fez com que o neto da aposentada Zuleide Matos faltasse alguns dias de aula. Por conta da localidade e da falta de segurança, o adolescente não teve como ir presencialmente todos os dias para a escola e precisou se virar para estudar em casa.

“A gente morava no Viver Melhor alugado, aí ganhamos a casa aqui no residencial. Porém, ele não pode usar o meu passe livre e nós não temos dinheiro para mandar ele de ônibus para a escola. O ideal é que tivesse uma escola próxima daqui para ele ir e vir andando, mas não tem”, ressaltou.

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Outro problema para a aposentada são os atendimentos de saúde dentro do conjunto. Ela sofre com sistema nervoso que desencadearam para um quadro grave de epilepsia, o que a faz depender de um acompanhamento médico especializado, o que não existe dentro do residencial.

” A prefeitura colocou a carreta da saúde e da mulher, mas o atendimento é complicado. Eu fui no período da tarde para marcar uma consulta pois não estava me sentindo bem e a moça disse que se eu quisesse ser atendida eu precisaria chegar 5h da madrugada para agendar uma consulta”, explicou.

Na época, o Portal Amazonas 1 questionou as pastas responsáveis, mas a equipe de reportagem não obteve respostas.

Déficit de Moradia

Para o presidente do Conselho de Arquitetura do Amazonas, Jean Faria, os deslizamentos causados por conta das chuvas são coisas que ocorrem há muito tempo em Manaus. Para ele falta fiscalização.

“O grande problema é que as pessoas ainda insistem em morar em locais que não são feitos para morar. Em costas de barranco, fundos de morro, em cima de igarapés”, explicou. O arquiteto e urbanista ainda ressaltou que toda construção deve ser fiscalizada por um responsável técnico, o que não acontece nessas situações.

Apesar disso, Faria afirmou que as autoridades possuem parcela de culpa, mas a população também precisa compreender que nem todo lugar é seguro para construir uma moradia. “As questões das invasões irregulares, acho que teria que ter uma atitude mais enérgica do próprio Estado ou município para evitar que isso aconteça”, destacou.

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Como forma para combater as invasões ou construções em locais irregulares, o urbanista destacou que as autoridades poderiam adotar métodos como sinalização nessas áreas, e ressaltar que os locais têm riscos de desabamento. Outra forma seria construindo conjuntos habitacionais.

Jean Faria

“Temos um déficit muito grande, principalmente para população de baixíssima renda que não tem como pagar. Esse tipo de habitação é feito com recursos a fundos perdidos, então isso pode ser pensado numa situação onde você faça um determinado conjunto habitacional de forma regular, de forma segura, em que você possa tirar dessas áreas de risco e colocando nesses conjuntos”, disse.

O arquiteto ainda ressaltou que, diferente do que acontece no Residencial Manauara, é necessário construir conjuntos habitacionais que ofereçam para a população segurança, saúde, educação, entre outros. “Não podemos fazer edificações que não têm atendimento de segurança. Sabemos que existem situações onde o tráfico toma conta, e acaba tirando aquela pessoa naquela casa e a pessoa acaba voltando para área de risco. Então é um problema social muito grande, que tem que ser resolvido por todos”, finalizou.