Manaus, 8 de maio de 2024
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Manaus, 8 de maio de 2024

Amazonas não cumpre lei das delegacias da mulher 24h e apresenta dados questionáveis sobre proteção feminina

Apenas a Delegacia da Mulher na Avenida Mario Ypiranga Monteiro, no Bairro Parque Dez de Novembro, opera em regime de plantão, disponível 24 horas por dia.

Amazonas não cumpre lei das delegacias da mulher 24h e apresenta dados questionáveis sobre proteção feminina

(Foto: Divulgação/ assessoria)

A lei nº 14.541, de 3 de abril de 2023, estabelece que as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) operarão de forma ininterrupta, inclusive, em feriados e fins de semana.

Estamos em fevereiro de 2024, passaram-se 10 meses sem a aplicação da lei. De acordo com o artigo 6º, da lei acima referida, a norma entrou em vigor na data de sua publicação. E até agora só há funcionamento de uma delegacia em Manaus no regime ininterrupto.

No dia 16 de junho de 2023, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, trouxe uma atualização por meio do site oficial do TJAM (2023). Conforme as informações da Delegacia Geral de Polícia Civil do Estado.

Destacou-se que apenas a Delegacia da Mulher na Avenida Mario Ypiranga Monteiro, no Bairro Parque Dez de Novembro, opera em regime de plantão, disponível 24 horas por dia, todos os dias da semana.

Em contrapartida, as Delegacias das Mulheres na Rua Desembargador Felismino Soares, 155, no Bairro Colônia Oliveira Machado, e na Avenida Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Cidade de Deus, seguem um horário de expediente, funcionando de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.

O próprio sistema judiciário aponta para uma operacionalização policial em desacordo com a lei, enquanto o poder legislativo, encarregado da fiscalização, raramente assume tal responsabilidade.

Segundo a cobertura da Rádio Rio Mar FM, em abril de 2023, o deputado estadual Wilker Barreto (Cidadania) visitou a delegacia da mulher no bairro Cidade Deus durante o final de semana, encontrando-a fechada.

O parlamentar ressaltou, na oportunidade, que as regras devem ser seguidas não apenas pelas futuras delegacias, mas também por aquelas já estabelecidas.

Até o momento, esta é a única manifestação pública de um parlamentar no Amazonas em relação à falta de aplicação da nova lei.

A norma antes de ser sancionada possui uma razão de existir. Condições sócio-históricas e sociológicas impulsionam o legislativo à criação de uma proteção estatal ao bem jurídico ameaçado.

No contexto do Projeto de Lei n° 781, de 2020, que resultou na promulgação da Lei nº 14.541, conforme exposto no relatório do Senador Rodrigo Cunha, a justificação para a norma se fundamenta na lamentável realidade de milhões de brasileiras vivenciando situações de violência.

Conforme destacado no parecer, em diversos casos, as mulheres deixam de formalizar a ocorrência devido a sentimentos persistentes pelo agressor, temor de retaliações, inexistência de uma delegacia da mulher em seu município ou devido à inoperância dessas delegacias durante a noite ou nos fins de semana.

Apesar de a justificativa da lei apontar que a delegacia fechada é um fator que contribui para a não formalização da comunicação do crime pela mulher, há uma omissão do ente federativo em evitar teias estatais que alimentam o ciclo de violência.

Aponto que é preciso reduzir ao mínimo o trâmite a ser percorrido pela mulher para romper a situação de violência doméstica e familiar.

Em Manaus, apesar do propósito legislativo de facilitar o acesso à proteção estatal para as mulheres, especialmente as vulneráveis, apenas uma delegacia opera ininterruptamente numa área privilegiada na cidade, distante dos bairros habitados por pessoas economicamente hipossuficientes.

Talvez a mulher agredida não tenha condições de custear a passagem da zona leste para a zona centro-sul, especialmente considerando horários noturnos; a hipótese torna-se mais verídica. Contrariando a ideia da necessidade de delegacias especializadas abertas 24 horas, na matéria para a Folha (2023), Wânia Pasinato, assessora sênior da ONU Mulheres, traz uma perspectiva diferente.

Para ela não há evidências de que delegacias em operação ininterrupta sejam essenciais para mulheres vítimas de violência. Ela enfatiza que, embora a vítima possa procurar ajuda, o que ocorre ali é apenas o ponto de partida, representado pelo boletim de ocorrência, que desencadeará um inquérito e não será conduzido durante o plantão.

Observo uma falha nas premissas iniciais do argumento da defensora dos direitos das mulheres, que chega à conclusão de que a delegacia é apenas um ponto de partida, atribuindo uma importância exagerada ao formalismo do inquérito.

A entrevistada parece desconhecer que a lei dispõe que na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.

A lei não diz que o policial tomará conhecimento, escreverá a comunicação do crime e depois dormirá em berço esplêndido esperando o dia raiar.

A lei nº 14.541/2023, em seus artigos 1º e 2º, estabelece que o atendimento às mulheres nas delegacias será realizado em sala reservada e, preferencialmente, por policiais do sexo feminino.

Esses agentes devem passar por treinamento adequado para garantir o acolhimento eficaz e humanitário das vítimas.

Eis aqui a diferença da delegacia especializada, onde não se restringe a um mero formalismo de registro e a procedimentos investigatórios insensíveis, como frequentemente ocorre em outras demandas.

Em outras palavras, a delegacia especializada vai além de ser apenas um ponto inicial ou um mero formalismo. Ela é fundamentada na intenção de criar um ambiente de proteção que abrange tanto a dimensão física quanto emocional da mulher.

Agora, abordo alguns dados oficiais que colocam em dúvida a eficácia do combate à violência contra a mulher no Estado do Amazonas

Pois bem, na análise da Delegacia da Mulher (central) no centro-sul de Manaus ao longo de janeiro a novembro de 2023, as estatísticas oficiais indicam a abertura de 1.232 inquéritos para investigação. Outros 733 inquéritos foram instaurados nas duas delegacias restantes durante o mesmo período, resultando em um total de 1.965 procedimentos de investigação.

Dos principais registros de crimes contra a mulher em Manaus, totalizando 20.042, foram abertos 1.965 inquéritos. Isso representa uma taxa de 9,8% de crimes que foram submetidos ao procedimento legal de apuração.

Lembro que o artigo 12 da Lei nº 11.340/06 estabelece que a autoridade policial tem a responsabilidade imediata de coletar todas as provas relevantes para esclarecer os fatos e suas circunstâncias. Adicionalmente, deve encaminhar, no prazo estipulado por lei, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

Pode haver argumentos divergentes em relação à necessidade de abrir inquérito para todos os crimes, especialmente no que diz respeito aos crimes de ameaça. Isso se deve ao fato de que, nesses casos, a ação penal está condicionada à representação da vítima.

Uma considerável parcela dos casos envolve lesão corporal dolosa, uma ação penal de caráter público incondicionado, demandando, assim, o impulso oficial do próprio estado. “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada” (SÚMULA 542 DO STJ).

Contudo, a escassez de abertura de inquéritos em comparação com a considerável demanda em Manaus pode ser explicada pela prevalência de duas condutas criminosas nos dados apresentados: ameaça e injúria. Os casos de ameaça contra mulheres totalizaram 6.969, enquanto os de injúria foram ainda mais numerosos, com 7.411 notificações (SSP-AM, 2023).

Ressalto que a ameaça configura um crime de ação pública condicionada à representação, enquanto a injúria é considerada uma ação de natureza privada.

Observo que nos casos de crimes de ação pública condicionada, ou quando há iniciativa privada, o início da investigação, incluindo a lavratura do auto de prisão em flagrante, depende da manifestação de vontade da parte legítima interessada, conforme estipulado nos §§ 4° e 5° do art. 5° do Código de Processo Penal (ROQUE; TÁVORA; ALENCAR, 2021).

Certamente, a justificativa prevaleceria se considerássemos a possibilidade de muitas mulheres terem simplesmente comunicado o crime e, posteriormente, optado por não representar contra o agressor.

Isso levanta questões pertinentes: por que algumas mulheres podem hesitar em representar no caso de crime de ameaça?

Será que nas delegacias há equipes técnicas disponíveis para orientá-las sobre a representação do crime?

Em relação às ações de natureza privada, existe uma colaboração efetiva com a Defensoria Pública para possibilitar que essas mulheres proponham ações criminais contra aqueles que as injuriam?

A primeira impressão costuma deixar uma marca duradoura, conforme expresso pelo antigo ditado. Pode ser que o legislador tenha considerado a criação de uma delegacia especializada com o objetivo de proporcionar um ambiente onde as mulheres se sintam seguras.

Mesmo considerando que a falta de abertura de inquéritos possa ser atribuída às vítimas que não retornam, o grande número desses casos sugere a possibilidade de o estado não transmitir a sensação de segurança necessária para encorajar as mulheres a prosseguirem com os procedimentos judiciais.

É inegável que, levando em conta a justificativa anterior, o estado não pode se eximir da responsabilidade pelo notável abismo entre a demanda e a abertura de inquéritos.

Com menos de 10% dos casos resultando em inquéritos abertos, fica a impressão de que a delegacia em Manaus desempenha predominantemente o papel de mera registradora de casos de violência, agindo de forma efetiva em menos de 10% das situações.

(*) Professor, advogado, filósofo, psicólogo e teólogo

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