Manaus, 27 de abril de 2024
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O 8 de janeiro também é fruto de “línguas estranhas”

O 8 de janeiro não é apenas um indicativo da loucura de poucos; não é apenas um fato explicado por psiquiatras. Ele indica uma crise no Poder Judiciário em geral.

O 8 de janeiro também é fruto de “línguas estranhas”

Atos antidemocráticos em Brasília (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

O ocorrido em 8 de janeiro de 2023 pode ser analisado sob diferentes perspectivas. A reprovação é clara em relação às ações de fanáticos ideológicos nesse dia. No entanto, é arriscado pensar que esse evento é uma causa em si mesma, ou seja, que a desconfiança na instituição judiciária está presente apenas entre aqueles que desejam um golpe militar e se manifestam junto aos quartéis.

Ainda mais preocupante é a crença de que as ações de algumas pessoas naquele dia são, exclusivamente, responsabilidade de ideias extremistas da direita.

Arrisco-me a afirmar que a instituição judiciária necessita realizar uma autorreflexão. As reprimendas e condenações dos envolvidos não contribuíram para melhorar a confiança do povo brasileiro na instituição. Uma pesquisa da Genial/Quaest, realizada em novembro de 2023, revela que o STF é aprovado por apenas 17% dos brasileiros. Independentemente da escolha política do indivíduo, observa-se um descrédito quase generalizado na justiça brasileira. A seguir, explico alguns fatores que contribuem para essa situação de desconfiança.

Ressalto que as instituições, em nível mundial, enfrentam uma crise, a qual, sob um aspecto psicológico, pode ser resultado de uma vivência pós-moderna centrada no sujeito como proprietário de si mesmo. Este individualismo afasta-se cada vez mais do senso coletivo.

Retornando à nossa análise, afirmo que o judiciário permanece como uma instituição distante do povo. Sabe-se que o Poder Legislativo é responsável pela criação das leis, enquanto o Poder Judiciário atua como o intérprete da lei. A própria palavra “hermenêutica” está relacionada à mitologia grega de Hermes, um deus que era o mensageiro.

Os deuses não compreendiam os homens, e os homens não entendiam os deuses; portanto, precisavam de um mediador, alguém que pudesse ser uma ponte de comunicação.

Hermes tornou-se esse deus que trazia as mensagens dos deuses de forma que os humanos pudessem compreender. Esse seria um papel do Judiciário: estabelecer uma comunicação simplificada com o povo.

Ocorre que o Hermes do Poder Judiciário resolveu tornar-se um deus que fala língua estrangeira, um deus que ninguém entende. Preferiu manter-se distante dos mortais. Inclusive, os novos hermes, ou seja, os estudantes de direito, ao estudarem leis e doutrinas, buscam apropriar-se de termos que os mortais não entendem. Até mesmo os estagiários escrevem em latim, estabelecendo assim uma comunicação restrita apenas aos habitantes do Olimpo.

E não é um problema apenas para os iletrados ou analfabetos, que são numerosos no país em desenvolvimento. Até mesmo um doutor em outra área do conhecimento não entenderá uma sentença ou acórdão do tribunal.

O Poder Judiciário resolveu investir no distanciamento em relação ao povo. No “espaço judicial”, há uma separação entre leigos e profissionais do direito. Estes últimos, treinados para entender as leis, utilizam uma linguagem e postura diferentes, afastando-se dos leigos.

Mantêm uma linguagem e rituais que distanciam, de forma análoga à época em que as missas eram realizadas em latim e o padre ficava de costas, provocando o afastamento dos fiéis católicos ao longo da história.

Por que resistem a ser compreendidos? Qual é o motivo do receio?

Em nome do monopólio para lidar com questões legais, consideram-se corretos ao manter uma distância em relação à clareza. É mais fácil compreender uma lei proveniente do Poder Legislativo do que quando interpretada pelos profissionais do direito.

Esse distanciamento cobra um preço. O povo leigo acha que tudo é uma encenação, que tudo é armado. Como Freud afirmava, é uma tendência criticar o que não se conhece. Como não vão criticar o STF? Como não vão criticar as decisões judiciais e seus ritos, se decidiram investir em uma linguagem que apenas os deuses conhecem?

A restauração da confiança do povo no Poder Judiciário passa pela clareza, pela eliminação das barreiras de entendimento, pela habitação dos juízes no mundo dos mortais. É preciso sair do Olimpo.

Senão, ainda que estejam com boas intenções e realizem julgamentos justos, o que geralmente ocorre, devido ao fato de o povo não entender seus pensamentos, poderá interpretar que estão maquinando o mal. Logo, esse povo pode desenvolver delírios persecutórios e subir ao Olimpo.

O 8 de janeiro não é apenas um indicativo da loucura de poucos; não é apenas um fato explicado por psiquiatras. Ele indica uma crise no Poder Judiciário em geral. A crise do Poder Judiciário é de linguagem. Trata-se de um Hermes que, por sua vaidade, preferiu deixar de interpretar a mensagem dos deuses aos mortais. Aliás, um Hermes que decidiu ser o deus de línguas estranhas. Transformando os tribunais numa Torre de Babel.

O princípio do acesso à justiça não deveria ser cumprido apenas no campo da instrumentalização processual, mas também na esfera da linguagem. Deveria ser um acesso à justiça esclarecida. O mesmo poder que pune grandes empresas por falta de clareza ao consumidor decidiu se tornar uma portadora de “línguas estranhas”.

Assim, um lunático que não entende nada de lei e julgamentos pode ir para a internet em uma transmissão ao vivo e, utilizando uma linguagem acessível, convencer milhares de leigos que os deuses do Olimpo estão promovendo o mal.

Enquanto profissional do direito, procuro ensinar aos meus alunos e estagiários que escrevam peças acessíveis, utilizando uma linguagem compreensível. Nada de latim, mesmo que isso seja exigido nos fóruns; é essencial que os juízes compreendam o português. Ninguém deve realizar uma “missa de costas” ao povo. O povo precisa entender o que está sendo dito.

Alguém poderia argumentar que isso simplificaria o direito. Claro! É importante lembrar que os operadores do direito não são a audiência principal; as partes leigas do processo são. Como disse Jesus, “a lei foi feita para o homem, não o homem para a lei”. Portanto, entre sacrificar o entendimento do povo e a beleza de palavras jurídicas estranhas ao cotidiano, o que seria mais justo?

Se o entendimento do povo continuar sendo sacrificado, a instituição ficará nua mais uma vez, exposta aos atos mais ridículos de quem acha que o estranho deve ser eliminado.

(*) Fabrício Paixão, professor, advogado, filósofo e psicólogo

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