Manaus, 2 de maio de 2024
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Manaus, 2 de maio de 2024

Repita-se em 2024

Que em 2024 você se repita, aliás, o mundo (a natureza) precisa urgentemente que você se repita. Senão, com tantas inovações, um dia este mundo não será suficiente para os humanos.

Repita-se em 2024

Identidade e caráter (Foto: Reprodução/Freepik)

Quando se fala em repetição no pleno século XXI, a era das possibilidades de ser o que nunca se foi, causa certo espanto. Qual coach iria ensinar a repetir roupas, carros, e comidas, quando o sonho da maioria é viajar para lugares nunca antes vistos, adquirir bens novos e experimentar iguarias exóticas de outras culturas? Incentivar a mesmice seria um desserviço ao mercado que pulsa pela novidade. A publicidade midiática impulsiona o consumo daquilo que foge ao orçamento da pessoa, numa promessa de que isso a fará ser alguém diferente e mais poderosa. Dizer para se repetir é ir contra a correnteza.

Lembro que o modo de vida no qual as coisas são consumidas, descartadas e substituídas pode nos prejudicar no futuro, mas a discussão aqui não é sobre ambientalismo. Preciso falar sobre identidade, sobre nossa relação com o passado. Antes de mais nada, é importante ressaltar que não há nada verdadeiramente novo que não tenha traços antigos. Em 2024, você estará repetindo algo de anos anteriores. É na repetição que você forma sua identidade e caráter. Não estou dizendo que não devemos buscar novidades. Pelo contrário, quero destacar que não devemos estar exageradamente inconformados com o que somos. Nem sempre o telhado precisa ser trocado, bastando um material que tape a pequena goteira.

“Repetir-se em paz” fala de uma pessoa em paz com o seu passado, ainda que tenha errado diversas vezes, mas que pode dizer a si mesma: “tudo bem, o que “fui” foi importante para ser o que sou”. “O que sou não pode ser visto como algo a ser substituído, superado”.

Certa vez, um paciente me disse: “quero trocar tudo em mim, uma nova vida, um novo eu”. Eu perguntei: “mas teria alguma coisa que você poderia repetir nesse novo eu?”. Ele respondeu: “criatividade”, depois foi enumerando outras qualidades. Perceba que nem tudo em você é descartável. Nem tudo em você deve ser substituído.

Que tal olhar um pouco para si e perceber suas qualidades que devem se repetir em 2024?

Verás que são muitas.

Na era do consumo, um pequeno problema no objeto já é suficiente para sentir um impulso para trocá-lo. Mesmo que não se consiga pela ausência de dinheiro, o desejo se instala. Isso se replica em nosso modo de vivência; um erro, uma falha já nos acendem um desejo de mudança em nós. Construímos uma ‘pessoa ideal’ e corremos atrás para ser aquilo, insatisfeitos com o que somos. Tudo isso é motivado por uma cultura que tem pavor da mesmice.

Pessoas querem ser diferentes dos outros. Ora, se queres de fato ser diferente, tenha o desejo de repetir-se. Pois quem hoje diz ser diferente vive num movimento diário sem repetição ou pelo menos deseja, ou seja, não quer comer no mesmo restaurante, não quer ir no mesmo cabelereiro, não visita os mesmos lugares turísticos, postar no feed com a mesma roupa é uma deselegância criminosa. Julgando ser diferentes são iguais aos produzidos por uma cultura de consumo e descarte.

Isso implica em uma identidade fluida demais, sem demarcações claras do que é meu e do que é do outro, como Byung-Chul Han argumentaria. Isso pode levar a uma crise em que a pessoa não sabe quem é verdadeiramente, tornando-se facilmente manipulável pela ausência de conteúdos próprios, parafraseando Hannah Arendt.

Tornando-se um sujeito que não pertence a si mesmo, mas sim aos movimentos dos influenciadores, ao levar muito a sério o mito do super-herói, tão discutido na psicanálise. Nesse mito, a pessoa passa a se perceber nos ídolos, através da projeção, sentindo-se melhor e mais forte. O problema é que, se o herói desmorona, leva consigo também aqueles que foram influenciados.

Claro que muitas pessoas se repetem por ausência de condições financeiras. Se tivessem essas condições, já teriam outras roupas, outros carros, outros trabalhos, outro amor, outros seios, outro nariz. Não se trata de se repetir com insatisfação por falta de possibilidades. É sobre se repetir e se sentir bem com isso, mesmo tendo possibilidades.

Isso não é um chamado à estagnação. Pelo contrário, se quiser, mude, inove, mas não entre nessa insatisfação crônica consigo mesma. Repetir-se é preservar a identidade, é preservar quem você é. Inove quando necessário, mas que não seja tudo. Entre em 2024 grato pelo que é, pelo que foi em 2023. Estabeleça uma harmonia com o seu passado.

A busca exagerada por mudanças revela uma pessoa que não se aceita, alguém inquieto consigo mesmo. Aceitar-se é reduzir a ansiedade. Repetir para si mesmo é dizer: “Não serei mais tão exigente comigo”. Que em 2024 você se repita, aliás, o mundo (a natureza) precisa urgentemente que você se repita. Senão, com tantas inovações, um dia este mundo não será suficiente para os humanos. E se alguém questionar por que passou a virada do ano com a mesma roupa do Natal, avise que você tem sabão em casa.

 

(*) Fabrício Paixão, professor, advogado, filósofo e psicólogo

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