Manaus, 8 de maio de 2024
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Manaus, 8 de maio de 2024

Opinião

Ruy Marcelo

As queimadas, a crise climática e o repensar do desenvolvimento

Segundo Ruy Marcelo – professor de direito – para realmente auxiliarem na prosperidade e bem-estar do povo, as estradas necessitam receber suporte de governança territorial e fundiária, com aparatos de polícia rodoviária e ambiental.

As queimadas, a crise climática e o repensar do desenvolvimento

(Foto: Divulgação)

Por Ruy Marcelo (*)

A grave ameaça à saúde pública em decorrência do nível crítico da poluição do ar nesta semana na região metropolitana de Manaus, por efeito da estiagem e de queimadas, requer de nós uma séria e urgente reflexão enquanto sociedade.

O repensar se faz inadiável ainda que tais queimadas tenham sido por pequenos produtores rurais, limitados a técnicas rudimentares de cultivo por aceiros ou coivaras. Ainda que os incendiários não pretendessem causar a desgraça da população nem fazer alastrar criminosamente o fogo para aumentar o pasto, consolidar a ocupação e devastar a floresta.

Em qualquer hipótese, é necessário avaliar mudanças de posturas de homens públicos e cidadãos a fim de por Manaus e as demais cidades amazonenses à salvo de algo pior e irreversível, como o episódio de poluição atmosférica que ceifou várias vidas em Londres, em dezembro de 1952, em catástrofe conhecida como o grande nevoeiro (the big smoke), que durou cinco dias, sob intensa fumaça tóxica emitida pelas chaminés das indústrias (que não foram interrompidas ao primeiro sinal) durante um longo smog (estacionamento de ar quente sobre a cidade por efeito de inversão térmica).

Nas ciências ambientais, denominam-se impactos cumulativos e sinérgicos os que resultam da soma e interação de várias atividades simultâneas e concorrentes sobre o meio ambiente. O conceito serve para considerarmos a capacidade de uma zona, região ou mesmo do planeta de suportar o total de usos e atividades humanas que interfiram negativamente no equilíbrio ecológico sem prejudicar os benefícios daí resultantes na regulação do clima e das águas.

Aplicado como premissa ao caso concreto, o conceito nos elucida que o ambiente amazônida já não suporta mais o conjunto de focos de queimadas no nosso verão sem grave comprometimento das condições climáticas. Como disse recentemente Serafim Correa: não se pode fugir do fato.

O fato é que o mundo mudou e está em crise, crise climática. Não é mais a terra segura de nossos pais, avós e ancestrais, tempo em que as queimadas não eram capazes de interferir sequer no imóvel vizinho ou no microclima local e animavam a festa de São João. Hoje, aumentado exponencialmente o contingente que emprega o fogo, somada à estiagem do El Niño, à sensível (e perigosa) diminuição da umidade do ar na Amazônia, às várias outras fontes de emissões de gases de efeito estufa (como das olarias, das termelétricas, da frota de veículos), as queimadas passaram a ser uma bomba devastadora não tolerável em hipótese alguma.

O mesmo se diga relativamente à conversão dos solos do bioma em novas pastagens e campos para agropecuária, pois, a despeito de sua extensão continental, a Floresta Amazônica se mostra frágil e já se aproxima do ponto de não retorno, segundo a ciência, a mercê de degeneração irreversível com o aquecimento planetário, por efeito de que perde umidade, biodiversidade, correndo o risco de ressacar, pegar fogo e se tornar futuramente uma savana ou deserto inóspito, onde não vai haver chuva, água, nutrientes para cultivar nada e onde seremos obrigados a migrar para fugir da terra arrasada.

Não obstante, temos como equacionar os interesses em jogo e evitar esse resultado. Não somos inimigos. Somos um mesmo povo, uma mesma sociedade, capaz de dialogar e de agir por discernimento para garantir o bem-estar geral. Ciência e tecnologia não nos faltam para transitarmos urgentemente para a economia de baixo carbono e ao eixo do desenvolvimento sustentável, em que se devem realizar, simultânea e transversalmente, os pilares da eficiência econômica duradoura, da equidade social e do equilíbrio ecológico, com ética, segurança, justiça e adaptação às mudanças climáticas.

A adaptação depende de os produtores rurais serem bem assistidos por instituições como o IDAM, EMBRAPA e as universidades, para produzirem sem queimadas e em conformidade com as melhores técnicas de sustentabilidade, por meio de sistemas modernos agroflorestais e de mecanização de baixo impacto, produzindo sem agredir os limites de tolerância da natureza e observando as regras de preservação da floresta. As áreas degradadas e desflorestadas devem ser prioritárias para abertura de novos cultivos, evitando-se novos desmatamentos.

Por outro lado, as estradas e ramais que atravessam a Floresta também devem se tornar ambientes sustentáveis. Não basta vê-las como um traçado que recebe asfalto para o ir e vir, pois não estão isentas de perigos, seja na fase de implantação, seja na fase de operação. Nesse sentido, basta apontar que nas margens da Br-319, estradas e ramais estaduais onde mais se registraram as queimadas da grande fumaceira em Autazes e Careiro.

Para realmente auxiliarem na prosperidade e bem-estar do povo, as estradas necessitam receber suporte de governança territorial e fundiária, com aparatos de polícia rodoviária e ambiental, que vão atuar fazendo a devida distinção entre os que querem agir conforme a lei e os que não medem consequências para prejudicar e infringir as normas de sustentabilidade. Além disso, devem ser com toda a tecnologia para não causar impactos ambientais. Devem respeitar os cursos hídricos e as faixas florestais de entorno.

Nessa perspectiva, a alternativa viável para a BR-319 nos parece ser a de concepção de uma estrada-parque, para mitigar o elevado risco de saírem de controle o uso e ocupação da região; mas, para tanto, precisamos de investimentos de monta (tanto para estruturar a pista quanto para custear as salvaguardas socioambientais) que até agora ninguém reuniu, e nem vai reunir em se permanecendo, iludido, na cortina de fumaça de culpar injustamente a ministra do meio ambiente por todos os males (e frustrações), esquecendo-se até dos superfaturamentos, contratos sem lastro financeiro e estudos de impacto incompletos que terceiros causaram…

Será que, em 2024, mantido o El Niño, estaremos preparados, com prevenção e precaução, para evitar o colapso climático amazônico ou sucumbiremos ante a nossa própria incapacidade de enfrentamento e adaptação? É o desafio que se lança ao governo e à sociedade.

A amostra de colapso climático de 2023 ainda não terminou. Que Deus nos ajude, enviando juízo, sabedoria.

(*) Mestre em Direito Ambiental, professor de Direito e procurador de contas

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