A descriminalização da interrupção da gravidez em até 12 semanas de gestação, o aborto, está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) com audiências públicas nesta sexta-feira (3) e segunda-feira (6). Dessa vez, o imbróglio está em uma interpretação da Constituição: estaria a criminalização do aborto descrita nos artigos 124 e 126 do Código Penal contrariando princípios fundamentais da Carta Magna, como a liberdade e a igualdade?
Na prática, o Supremo vai decidir se quem aborta deveria ser preso ou não. Atualmente, o aborto é crime no Brasil e quem o pratica pode ser preso por até 3 anos. A discussão nesse momento é sobre a descriminalização.
O processo e seus questionamentos
O assunto corre desde março de 2017, quando o Instituto de Bioética (ANIS) e o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) pediram apreciação sobre o aborto no Supremo à luz da Constituição. As audiências começaram agora, mas uma decisão de fato pode levar anos para acontecer. Nelas, diversos atores sociais vão tentar mostrar os diferentes pontos de vista sobre o tema e suas nuances.
As entidades que pediram apreciação do STF sustentam que o Código Penal, em que consta a criminalização do aborto, é uma lei de 1940, anterior a Constituição de 1988. Por isso, cabe um pronunciamento do STF sobre se o código respeita princípios como a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade da vida, a proibição da tortura, a igualdade, a liberdade, e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres – que são princípios constitucionais.
Apesar do PSOL e do Instituto de Bioética terem pedido o pronunciamento, outras instituições pediram para entrar no processo na qualidade de amici curiae: o termo designa o “amigo da corte”, que qualifica aqueles que aconselham o STF sobre temas polêmicos.
Na prática, eles têm direito a enviar documentação para a corte e podem se pronunciar no dia do julgamento. Se a instituição não envia esse pedido, não pode fazer sustentação oral no plenário. No fim, quem vai decidir será sempre o STF por meio do voto de seus ministros – mas a entrada dessas instituições contribui para ampliar o debate.
Entre os pedidos para serem “amigo da corte”, estão o Partido Social Cristão (PSC) e a União dos Juristas Católicos do Estado de São Paulo (Ujucasp). Em contraposição à petição [que argumenta ser a criminalização do aborto contra princípios constitucionais], a União dos Juristas sustenta que a Constituição convive há 30 anos com o Código Penal e, por isso, não há controvérsia constitucional sobre a questão.
Embora especificamente o STF vá tratar se o Código Penal fere princípios constitucionais, o tema esbarra em diversas controvérsias em vários âmbitos da sociedade: e é essa a motivação para o chamamento da audiência pública, segundo a ministra Rosa Weber, relatora da matéria. Há questões de cunho moral, religioso, ético, filosófico, jurídico, de saúde pública, e de direitos humanos e da mulher que envolvem o tema. Por esse motivo, assim, a sociedade será ouvida.
A situação atual do processo é a seguinte:
Quem entrou com a ação: PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e Instituto de Bioética (ANIS)
Quando a ação foi protocolada no STF: 8 março de 2017
Quem pediu para entrar na qualidade de “amigo da corte”: o Partido Social Cristão, a União dos Juristas Católicos do Estado de São Paulo e o Instituto de Defesa da Vida e da Família, entre outros.
Resumo da petição: O processo tem o nome de ADPF 442 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442). À luz da Constituição, questiona-se os artigos 124 e 126 do Código Penal — que, na prática, criminalizam o aborto. São eles:
Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque:
Pena: detenção de um a três anos
Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena: reclusão, de um a quatro anos.
O que aconteceu até agora:
Desde que a petição foi protocolada, a ministra Rosa Weber (relatora do processo), tomou algumas providências:
a) Pediu informações à Presidência da República, ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados, à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da República.
b) Recebeu pedidos de atores sociais para entrar na qualidade de “amigo da corte”, conselheiros do STF. Esses pedidos, no entanto, só serão avaliados após as audiências públicas.
c) Convocou audiência pública para serem realizadas e abriu inscrições para quem quiser participar da audiência. Estamos nesta fase.
Quem vai participar das audiências públicas: Instituições da área de saúde, como Fiocruz e Ministério da Saúde, instituições do direito, representantes religiosos, ONGs e especialistas. As audiências acontecerão na sexta-feira (3) e na segunda-feira (6) em dois períodos: das 8h20 às 13h30; e das 14h30 às 19h30.
O que acontece depois das audiências?
Após as audiências, a relatora e ministra Rosa Weber avaliará o material e elaborará o seu voto. Depois, ela encaminha seu parecer para Cármen Lúcia, presidente do Supremo, que coloca o tema em pauta.
Por decisão da presidente, é marcado o julgamento em que todos os ministros do STF presentes na sessão podem votar. Não há um prazo para que isso aconteça. Mas há alguns precedentes de prazos em temas semelhantes:
Anencefalia (ADPF 54): foi protocolada em 2004 e a decisão saiu em 2012: período de 8 anos para a decisão. O STF entendeu que mulheres com feto anencéfalo poderiam abortar.
Células-tronco (ADI 3510): foi protocolada em de 2005 e a decisão saiu em 2008: período de 3 anos para a decisão. O STF entendeu que embriões podem ser usados para pesquisas com células-tronco.
Além disso, em novembro de 2016, a 1ª Turma do Supremo decidiu, ao analisar um caso específico, que o aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime.
Controvérsias históricas sobre o aborto
Se analisarmos os casos anteriores semelhantes já decididos pelo STF, alguns anos podem transcorrer até a decisão – o que dará tempo para o material disponível nas audiências seja analisado pela sociedade. Algumas controvérsias históricas sobre o tema que devem voltar ao debate:
Religião e moral
Como nas questões do feto anencéfalo e do uso das células-tronco embrionárias, muito do debate sobre o aborto gira em torno de uma controvérsia fundamental: quando começa a vida? Alguns setores consideram que embrião e feto não são uma vida constituída. E, por isso, não caberia a discussão. Para outros, a vida começa no momento da concepção.
Há aqueles que sustentam que a pergunta não cabe na discussão e não é necessária para as decisões relacionadas ao aborto – de qualquer modo, seja pela negação da pergunta, seja pela necessidade de uma resposta, essa controvérsia persiste no debate de uma maneira ou de outra.
Confira algumas posições:
“Para alguns setores, a vida é entendida de maneira abstrata. É a vida de um possível ser. Nesse argumento, ir contra o aborto, seria defender a vida. No nosso entendimento, mesmo dentro da fé, a mulher tem o livre arbítrio, dentro da sua fé e da sua consciência, para decidir. O problema do aborto, no início, está atrelado à questão do adultério, de que uma mulher só interromperia uma gestação para escondê-la. Essa questão da vida na igreja só começou a surgir a partir do século XIX”, diz Maria José Rosado Nunes, presidente das Católicas pelo Direito de Decidir.
“O direito à vida é incondicional. Deve ser respeitado e defendido, em qualquer etapa ou condição em que se encontre a pessoa humana”, se pronunciou a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em nota. A CNBB reiterou sua posição em defesa da integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana, desde a sua concepção até a morte natural.
Saúde pública
Em meio ao debate, reportagem da Folha de S. Paulo mostrou que o SUS gastou R$ 486 milhões com internações para tratamentos relacionados a complicações do aborto entre 2008 e 2017. Dessas interrupções das gestações, 75% delas foram provocadas. Segundo o jornal, ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016 relacionadas às práticas. O Ministério da Saúde e aguarda um retorno sobre os dados que devem integrar um relatório que o governo vai apresentar ao STF.
A questão do aborto, assim, é muitas vezes tratada dentro do âmbito da saúde pública – com a consideração de que a descriminalização geraria abortos mais seguros, e, portanto, menos mortes de mulheres e menos gastos com saúde pública.
Outros setores consideram que não há uma preocupação a longo prazo com a saúde psíquica da mulher que aborta e que a descriminalização do aborto não considera esse aspecto. Há também questões relacionadas à disponibilidade de contraceptivos e à qualidade da saúde pública de modo geral.
A Pesquisa Nacional do Aborto, feito pelo ANIS em 2010 mostrou que 1 em cada 5 mulheres brasileiras fez pelo menos um aborto até os 40 anos – o que, para o instituto, demonstraria que mulheres praticam o aborto independentemente da criminalização e, por isso, estariam sujeitas a práticas inseguras.
Para Angela Gandra, estatísticas de saúde pública não raramente são manipuladas para sustentar um determinado argumento. Para ela, mesmo que os dados representassem a realidade, não cabe uma sustentação pró-aborto em nome de um “pragmatismo”. “Vamos, então, descriminalizar a corrupção porque todo mundo pratica?”, questiona.
Direito e controvérsias jurídicas
A complexidade do tema passa pelo entendimento de todos os princípios constitucionais, que muitas vezes são amplos e dão margem a diferentes interpretações. Por exemplo, entendimentos sobre igualdade, dignidade da pessoa humana, dentre outros podem ser vistos de vários pontos de vista — principalmente quando se muda o sujeito da análise. Alguns setores olham o assunto do ponto de vista do feto, quando considerado vida. Outros olham sobre o ponto de vista da mulher.
Além disso, outra controvérsia é sobre o próprio papel do STF enquanto a instância para deliberar sobre o tema. Quando a ministra Rosa Weber requisitou pronunciamento da Presidência da República sobre o assunto, a resposta recebida é que a instituição entende que há “um desacordo moral razoável” e, por isso, o poder legislativo seria a arena deliberativa competente para promover a discussão. O Parlamento, diz a Presidência, é o espaço democrático responsável por tutelar o pluralismo político.
Já a ANIS considera que, nos últimos anos, o STF se consolidou como sendo a instância legítima para questões semelhantes, como foi com a decisão sobre a União Estável, sobre o uso de células-tronco de embriões para a pesquisa, e sobre a interrupção da gestação no caso de fetos anencéfalos.
*Informações retiradas do G1
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