
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
*Giovanni Cesar
O trabalho mudou, mas a lei não acompanhou. Enquanto a tecnologia avança, a sociedade se reorganiza e as relações profissionais se multiplicam, a base que regula os direitos trabalhistas no Brasil continua sendo a Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. Uma norma criada para um país industrial, que funcionava à base do apito da fábrica, ainda dita as regras de um mercado em que boa parte das pessoas nem tem horário de entrada, tampouco de saída. E isso não é só anacrônico, é injusto.
Hoje, quem está sob a proteção da CLT tem acesso a uma série de direitos que, na prática, funcionam como um pacote de sobrevivência: férias, 13º, FGTS, licença em caso de doença, estabilidade em caso de gravidez, seguro-desemprego. Já quem está fora — seja como PJ, autônomo ou trabalhador de aplicativo — vive sem rede. Pode trabalhar 14, 16, 18 horas por dia, receber menos que o salário mínimo e ser dispensado em momentos críticos da vida, como em caso de acidente ou adoecimento. É como se existissem duas classes de trabalhadores: os protegidos e os invisíveis.
Esse abismo ficou ainda mais evidente nos últimos anos, com o crescimento do home office, da gig economy e da informalidade digital. E, embora tenhamos avançado em algumas frentes — como o reconhecimento do burnout como doença ocupacional —, a legislação ainda falha em dar respostas sobre os novos formatos de trabalho. A empresa precisa arcar com custos do home office? Tem que oferecer cadeira ergonômica? Deve limitar o contato fora do expediente? A CLT, do jeito que está, não responde. E, quando o legislador se omite, sobra para o Judiciário, onde cada juiz decide com base na sua própria visão de mundo. Isso gera insegurança jurídica, sobrecarrega os fóruns e prejudica tanto o empregador quanto o empregado.
Não é viável nem razoável imaginar que todos os vínculos precisarão se enquadrar no molde tradicional da carteira assinada. Mas também não é aceitável manter milhões de pessoas sem qualquer tipo de amparo legal. O trabalhador que pedala oito horas por dia para uma plataforma de entregas está gerando lucro. Se ele sofre um acidente nesse percurso, não pode ser tratado como um parceiro informal. Ele merece, no mínimo, um sistema de proteção que reconheça essa relação de dependência.
A pejotização irrestrita é outro ponto que exige atenção. Não podemos normalizar empresas que transformam atendentes de telemarketing ou até empregadas domésticas em pessoas jurídicas. Isso não é autonomia, é precarização. Além do impacto direto na vida do trabalhador, essa prática fragiliza a Previdência Social, já que reduz a arrecadação e transfere para o Estado os custos de situações que deveriam ser compartilhadas com os empregadores.
Não se trata de retornar a um modelo engessado, mas de criar um novo equilíbrio. O país precisa reconhecer que o trabalho ganhou novas formas, e todas elas merecem respeito, dignidade e alguma forma de proteção. Fingir que só existe vínculo quando há CLT é deixar metade da força de trabalho desamparada. A legislação precisa parar de olhar para o retrovisor e começar a enxergar o presente. Ou continuaremos empurrando para a informalidade quem mais precisa da lei.
*Mestre em Direito e advogado trabalhista
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