Manaus, 8 de maio de 2024
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Manaus, 8 de maio de 2024

A inutilidade do homem do interior

"Se a gente gosta de se banhar no rio ou contemplar a natureza, mas  com interesse de bater fotos e publicar, perdeu-se o prazer pela coisa em si", avalia Fabrício Paixão, articulista do Portal AM1.

A inutilidade do homem do interior

(Foto: Divulgação/Pixabay)

Por Fabrício Paixão*

A utilidade da vida está bem descrita na frase: “quero ser alguém na vida”. Isso implica que a pessoa  ainda não é o que deseja ser, porém, corre desesperadamente para se tornar o que almeja ser. O Instagram  estimula  sua  insatisfação  consigo mesma, uma vez que outros estão conquistando e obtendo sucesso na vida. Nisso a pessoa se sente paralisada. Como se a sua vida não estivesse correndo ou pelo menos na velocidade semelhante aos outros. Ficando para trás.

Ocorre na pessoa, comumente, pensamentos como: “preciso estudar mais”, “passar num concurso público”, “trabalhar mais”, “treinar mais”. Precisa ser o  que ainda não se é, vive dizendo “eu não sou”. Gerando um movimento de insatisfação intenso e a busca  desenfreada para  colocar utilidade  cultural na vida. Aliás,  só  é útil na cultura ocidental quem é produtivo. Por isso, os idosos, deficientes e dependentes químicos improdutivos são tão esquecidos em políticas públicas.

Se entrar no shopping sem dinheiro sentirá o embrulho estomacal de ser impotente para realizar o desejo de ter, e uma voz interna dirá: “seja útil, se ganhar dinheiro, poderás ter a boa sensação de poder ser visto”.

Aliás, já repararam que temos dificuldades de encarar  pedintes?  Quando alguém estende a mão pedindo alguma ajuda nos estabelecimentos comerciais, é bem provável receber um não sem que seus olhos sejam percebidos por outros. É a tal da invisibilidade de quem não possui poder de consumidor.

Na internet haverá incentivo para você ser diferente do que é. “Compre meu curso e se destaque”. “Compre o meu livro e aprenda 7 passos para ser espetacular”. Essas propagandas trazem a mensagem de que você não é bom o suficiente, precisa melhorar, encontrar uma utilidade na vida.

Nas igrejas, diferente dos ensinos de Cristo, se tem uma exigência para o sujeito mudar o que se é. Na família, os pais, as tias e os primos enviam editais ou vagas de emprego para a pessoa ser alguém na vida. Em que lugar a  pessoa  de  fato  é  aceita pelo que é?

Isso tem sido tão intenso, que as crianças de hoje não podem ser crianças, os pais não aceitam que brinquem, pois isso é inútil. É preciso estudar, pela manhã, a tarde fazer um curso para ocupar o vazio do dia e a noite fazer tarefas. Ou seja, a criança tem que começar cedo a “ser alguém na vida”.

Até as crianças devem se queixar do cansaço. É chique queixar-se de  uma jornada produtiva. Aqueles que não podem se queixar de uma jornada produtiva são inúteis e se sentem assim.

Claro que isso implica, futuramente, em ansiedade intensa, depressão e até vontade de dormir para sempre, mas o que importa é que a vida tenha utilidade cultural.

Nessa busca por uma vida útil se vive muito no futuro. O passado é visto como algo reprovável, nunca celebrado. “Devia ter estudado mais”. “Devia ter feito isso ou aquilo”. O presente é imperceptível. Pois tudo que se faz é pensando num possível bom desfecho. Estuda-se sem o prazer pela aula em si, a gente pensa no diploma. Até no futebol, a utilidade tomou conta. Se torce pelo time durante o jogo, não pelo jogo presente, mas pensando na consequência: “se ganhar, vai ser campeão noutra rodada”.

O presente se torna um mero  meio. E a vivência prazerosa do presente cede lugar à ansiedade do futuro. Se não tirar foto da  comida  num  restaurante glamourizado para que haja curtidas nos stories, a sensação que fica é que o momento não foi vivido. Não foi útil gastar dinheiro sem registro.

A sociedade atual valoriza o que é útil. O útil é o produtivo. Criando a cultura novas necessidades ao sujeito. Não se vive mais sem internet, sem celular […].

Numa das minhas andanças pelo interior do Amazonas, enquanto missionário, me deparei com uma pessoa simples, num local isolado, o vizinho ficava 30 minutos de rabeta. Que dizia, por volta 17hs, “vou ali buscar a janta”.

A tarde cochilava sob o embalo da rede. Parece que o tempo era outro. Numa total inutilidade da vida. Sem preocupação com a produtividade neoliberal. Sem a necessidade de criar novas necessidades. Vivia bem sem exigências por diplomas de graduação, mestrado e doutorado. Não se preocupava com a estética padrão. O tempo não era inimigo. O presente era presentificado. Não havia muito interesse no futuro.

Isso me levou ao questionamento, não seria mais prazerosa a vida inútil? Não seria uma forma de valorizar mais a vida? Viver o presente. Aproveitar o momento por si, sem a preocupação por resultados futuros. Pular no rio, sem nenhuma busca por utilidade. Mas pelo simples fato de sentir a boa sensação da frescura da água.

Comer peixe assado, comer graviola, jambo e manga, sem precisar pesquisar no Google: “quais são os benefícios para a saúde?”.

Não buscar utilidade ao ato de comer. Pois quando  buscamos  utilidade para algo, acabamos de perder aquilo por si só.

Parafraseando Kant, o gosto, o amor e o belo são desinteressados. Ou seja, se tenho interesse naquilo que gosto, não gosto. Se alguém diz, gosto de sua companhia porque você me presenteia, ora, a pessoa gosta do presente, não da sua companhia. Só acredite no amor em que a pessoa te ame pelo simples fato de você ser quem você é.

Se a gente gosta de se banhar no rio ou contemplar a natureza, mas  com interesse de bater fotos e publicar, perdeu-se o prazer pela coisa em si. Com isso, o momento é sempre algo que  não se tem o verdadeiro gosto. A vida vai  ficando um tédio. Vazia. Pois não se vive de fato o agora.

O valor da vida está na inutilidade. Fazer algo simplesmente pelo gosto de fazer aquilo, sem querer torná-lo útil. Se quiseres colocar utilidade nas tuas relações, você estará perdendo o gosto pela pessoa, apenas usando-a como meio para um fim. Essa história de curso para melhorar o relacionamento, geralmente, é comprado por quem já não ama mais a pessoa pelo que é. Quem ama alguém de verdade presentifica a relação, foca no presente, sem essa história de buscar melhorias e utilidade.

Amor verdadeiro é o inútil. Sem interesse que a pessoa seja outra pessoa. Sem exigência que a pessoa se torne isso ou aquilo. Alguém dirá: “mas se amo, vou querer o crescimento pessoal da pessoa que amo, vou exigir que mude sim”. Sinto em te dizer que você ama um ideal de pessoa que você deseja que o seu parceiro se torne, no caso, ele ainda não é esse ser ideal, portanto, você ama o que não existe, algo que você inventou.

De tudo o que disse, em suma, o homem do interior me mostrou que a vida inútil nos faz viver o presente. Aceitar quem somos. Não viver pelo “eu não  sou”,  ser satisfeito com a nossa condição  humana. Não  viver pensando  desesperadamente  em se construir como uma nova pessoa para agradar a cultura. Isso pode evitar ansiedade e a perda de si mesmo.

Comer pelo prazer de comer. Assistir o jogo pelo prazer de assistir o jogo. Estudar pelo prazer de estudar. Namorar pelo prazer de namorar. Não  buscar interesses nesses atos, pois isso tirará o valor da coisa por si. Tirará o valor da  vida. Pois a vida útil diminui a vida  presente, e  só existe  a  vida presente, a vida futura nunca vai existir.

Pais, deixem seu filho ser inútil. Deixe-o brincar com brincadeiras inúteis, sem a necessidade de colocar finalidade na brincadeira, sem a preocupação com o tempo. Se fizerem isso, talvez, tenhamos futuros. Pois vivemos tanto no futuro, que um dia podemos acabá-lo pela insuportabilidade que a vida se apresentará se continuarmos no caminho da produtividade neoliberal, da exigência de estarmos sempre insatisfeitos com o que somos.

No fundo, trabalhamos muito, tentando colocar utilidade na vida, visando chegar ao ponto da inutilidade do homem do interior. Viver sem se preocupar com o tempo. Morar num local em que não se tenha a exigência cultural de sempre ser melhor. De viver o presente, sem a preocupação com o futuro, quando chegar a hora da janta, ir ao rio e buscar o peixe. O problema é que pode ser muito tarde.

(*) Professor, advogado, filósofo, psicólogo e teólogo

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