Manaus, 17 de maio de 2024
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Manaus, 17 de maio de 2024

Filhos como meio de enfraquecimento de medida protetiva

Aplicadas pelo judiciário, as medidas protetivas são resultados de bons avanços legislativos. Mas e quando a mulher tem filhos com o agressor? Aqui se tem um problema.

Filhos como meio de enfraquecimento de medida protetiva

Muitas mulheres são vítimas de violência de gênero, algumas procuram no Estado a proteção. Porém, não é um simples apertar de botão em que o Estado aparece como um super-herói e salva a vítima. Pelo contrário, a mulher pode até ser protegida pelo Estado, mas não sem passar por uma via dolorosa da vergonha e descaso.

Em 2018 (G1), num caso chocante no Amazonas, a vítima registrou vários boletins de ocorrência, e conseguiu a medida protetiva, porém, depois de um tempo foi brutalmente assassinada. Uma agente pública, sobre o caso, disse que pensava que tudo estava bem, pois a vítima não tinha registrado mais boletim de ocorrência.

Ou seja, o Estado é o super-herói dorminhoco em que se deve cutucar e cutucar para que ele faça alguma coisa. Aliás, o princípio que o Estado mais gosta é o da inércia, o da eficiência lhe causa calafrios.

Ora, a delegacia não deveria ter um sistema de acompanhamento das mulheres sob medida protetiva? O silêncio da mulher implica que tudo está bem? Se o silêncio da vítima leva o Estado a concluir que tudo está bem, tudo certo, não precisa de nada, quem está morto encontrou o ápice da felicidade.

Lembrando que a violência de gênero aumentou consideravelmente no Amazonas, apesar de viaturas empáticas (fofas) pintadas de cor rosa. Espantoso como isso não resolveu.

Poderia chamar de políticas públicas simbólicas. Tendo o objetivo de mostrar que o super-herói dorminhoco se importa e está fazendo alguma coisa, porém, os dados oficiais ressoam o roncar de um Estado inerte. Onde finge que trabalha, e nos discursos midiáticos revela sua eficácia no combate à violência. Um teatro da cidade maravilhosa com cortinas pintadas de sangue.

Dito isso, as medidas protetivas são resultados de bons avanços legislativos. E são aplicadas pelo poder judiciário. Mas e quando a mulher tem filhos com o agressor? Aqui se tem um problema.

A vítima de 2018, citada acima, apesar da medida protetiva, não podia impedir o pai de conviver com os filhos. Ou seja, os agressores encontram essa brecha para se aproximar da vítima e continuar o ciclo de violência.

De acordo com o CNJ (2019), um juiz disse certa vez a mulher vítima: “você gostaria de ficar longe dos seus filhos?”. Defendendo que o agressor, apesar de medida protetiva, continuasse convivendo com os filhos. Ou seja, o agressor ainda teria contato com a mulher agredida.

A medida protetiva dificilmente se estende a suspensão da convivência do agressor com os filhos. Pense comigo:

(1) a mulher recebe medida protetiva;
(2) tem filho com o agressor;
(3) o filho mora com a mãe (vítima);
(4) a medida protetiva só se refere a mulher, não ao filho;
(5) o homem vai até a casa da vítima alegando o direito de convívio com o filho;
(6) se aproxima da mulher e pode continuar o ciclo de violência;
(7) a medida protetiva, nesse caso, torna-se tão relevante quanto a cor rosa nas viaturas.

Pois bem, o sujeito é fruto de sua cultura. Somente num exercício crítico e reflexivo pode superar arquivos mentais que organizam a vida social, porém, aprisionam grupos.

O poder judiciário não está imune ao pensamento dominante. Seus agentes, na maioria, reproduzem o sistema invisível do patriarcado. Aliás, na própria formação dos seus componentes prima-se pelas matérias instrumentalistas, numa razão fundada em lógica que não considera a complexidade das relações sociais.

A jurisprudência brasileira caminha nesse sentido, conforme decidiu o TJ-MG (2021), onde se depreende que se não houver restrições ou suspensões de visitas ordenadas pelas autoridades criminais competentes e não houver evidências de violência do pai contra a criança, e se os laços emocionais entre pai e filho não forem afetados, o direito às visitas deve ser mantido.

Ainda se pontuou que mesmo que seja necessário que uma terceira pessoa intermedeie a entrega e a devolução da criança durante as visitas, desde que não haja nada negativo a ser considerado, a relação entre pai e filha não deve ser supervisionada em sua totalidade.

Essa interpretação é questionável, pois não considera que a visita do agressor pode ser prejudicial à integridade emocional e física da mulher e dos filhos. Uma oportunidade para que o agressor manipule ou coloque em risco à vida da vítima.

Em algumas situações, é possível observar que o direito de convivência com o pai violento é priorizado em relação às consequências da conduta agressiva deste com a mãe, que pode afetar a criança de forma direta ou indireta (CNJ; IPEA, 2019).

Há opiniões divergentes sobre o tema. Alguns juízes entendem que, se o pai agride a mãe, é necessário investigar se também há violência contra os filhos, pois a agressão à progenitora pode ser um sinal de que as crianças também estão sendo vítimas de violência. Por outro lado, há magistrados que consideram que os pedidos de restrição de visitas de homens acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher aos filhos não são justificáveis (CNJ; IPEA, 2019).

Agrava-se a percepção do fenômeno controverso com a fala de juízes que afirmam que esses pedidos são motivados pelo desejo da mulher de controlar o filho e impedir o pai de vê-lo (CNJ; IPEA, 2019).

O relatório traz a fala de uma defensora pública em que, segundo ela, a lei da alienação parental tem impactado negativamente as mulheres, especialmente em casos de violência doméstica. As crianças são testemunhas da violência e podem relatar que suas mães foram agredidas verbalmente ou fisicamente pelo pai, o que pode resultar em relutância em relação ao agressor. Durante as audiências para discutir o direito de visita, o pai alega que a mãe está praticando a alienação parental. No entanto, essa alegação pode ser devido à criança ter conhecimento da violência ou tê-la testemunhado.

Ainda segundo a defensora, infelizmente, a lei da alienação parental não leva em consideração as mulheres que são vítimas de violência doméstica e isso pode prejudicá-las. A alienação parental é particularmente preocupante em casos de violência doméstica, pois quando as crianças são entrevistadas por psicólogos ou em audiências, pode ser difícil determinar como elas sabem sobre a violência. Essas crianças podem ter apenas quatro ou cinco anos de idade, mas podem reter essas informações por um longo tempo.

Segundo o citado relatório, uma entrevista com uma mulher vítima de violência doméstica ilustra essa perspectiva. Ela conta que, logo após a separação, não permitia que seu ex-parceiro visse seu filho porque ele fazia ameaças tanto a ela quanto à criança. No entanto, em uma audiência na vara de família, o juiz decidiu pela guarda compartilhada, o que causou grande ansiedade e insegurança na vítima.

Coloca-se sobre a vítima de agressão o enquadramento de alienação parental, quando, na verdade, está lutando pela sua proteção, sem amparo estatal adequado, e ao mesmo tempo protegendo os filhos.

Sugere-se que os magistrados percebam que os filhos, ainda que não agredidos, são vias para que o agressor se aproxime de sua vítima. Entende-se que os filhos possuem o direito ao convívio com a paternidade, porém, esse direito pode suprimir, em alguns casos, a tranquilidade e segurança da mulher. Ou seja, o direito garante aos filhos o “espetáculo” de presenciarem o agressor intimidando suas mães, por vezes, agredindo-as e até matando-as, tudo isso em nome do melhor interesse do menor, que, leia-se, melhor interesse do agressor.

(*) Professor, advogado, filósofo e psicólogo

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